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Resenha

Mikaia, de Taiane Santi Martins
Elenilto Saldanha Damasceno

"Mikaia", romance de estreia da escritora gaúcha Taiane Santi Martins, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2022, aborda aspectos relacionados à construção, desconstrução e reconstrução identitária por meio de tessituras entre processos de esquecimento e reconhecimento, deslocamento e pertencimento, experiência e memória.

O romance principia com uma cena encantadora, a qual representa a performance de um casal de bailarinos na estreia de um espetáculo. A bailarina Mikaia atua com perfeição, mas quase automaticamente: "Taú me disse que hoje fiz uma de minhas melhores apresentações da vida [...]. O meu corpo sabe exatamente o que fazer, é o que está dentro do corpo que se perdeu. Uma ausência total de qualquer construção identitária, qualquer vínculo afetivo ou sinal de reconhecimento. Uma máquina em pleno funcionamento físico e cognitivo".

Durante a narrativa, evocações de memórias episódicas pelo corpo em movimento e ritmo desenvolvem-se progressivamente. Isso fica explícito em cena posterior, quando a performance do dueto é repetida, mas Mikaia, então, dilui-se na dança, imersa em recordações e sensações: "Ouço os mesmos três acordes de sempre e penso no sal das lágrimas que se perdem no mar. [...] Uma onda se dobrando ao sopro de uma brisa costeira. Giro o rosto e vejo Taú ao meu lado acompanhar o mesmo movimento de marola prestes a alcançar a praia. Um palco deve ter a mesma força dos oceanos, porque me sinto renovada ao perceber mais uma vez as ondas musicais se diluindo no meu corpo e se fazendo gesto. Uma gota do oceano nunca será uma coisa fraturada. A água salgada não perde seu caráter de oceano só porque alguém lhe colocou em uma vasilha. Tampouco existem remendos para a água que volta ao mar. Quero me fazer oceano".

A narrativa inicia com a personagem protagonista em crise severa de perda de memória. Mikaia busca resgatar suas lembranças e origens por intermédio das reminiscências de vida e dos vínculos afetivos compartilhados com a irmã Simi e a avó materna Shaira. No entanto, ambas não colaboram muito, principalmente sua irmã, a qual faz questão de enterrar um passado familiar traumático. Assim, para tentar alcançar suas lembranças, Mikaia recorre a outros instrumentos e recursos, como a dança e a memória corporal, as impressões da língua materna entranhadas em sua sensibilidade e, por fim, o retorno à terra natal.

As três mulheres (Mikaia, Simi e Shaira) migraram de Mocambique para o Brasil. Mikaia, quase na adolescência à época, já tivera uma primeira crise aguda de perda de memória. Anos depois, agora adulta e no Brasil, volta a enfrentar um segundo quadro severo de amnésia e não recorda mais que é refugiada e vítima de uma diáspora forçada por uma cruel ditadura e uma trágica e violenta guerra civil ocorridas na ex-colônia portuguesa após sua independência. Mikaia, esquecida de sua vida pregressa e com a sensação de deslocamento no país para o qual migrou, emerge como imagem de uma identidade desconstruída e fragmentada pelo sentimento de incompatibilidade e não pertencimento ao lugar onde sobrevive (para si, um não-lugar) e como projeção corpórea de um eu discursivo sem rumo, em busca de um lugar que seja seu.

As agressões físicas e psicológicas e o ódio latente nos preconceitos racistas e sexistas, os quais ameaçam seu corpo e sua existência, persistem nesse não-lugar chamado Brasil, um território de "acolhimento" hostil. Manifestam-se na cena em que se depara com pulhas os quais a assediam na rua: "Eles cobiçam minha bunda, meus peitos, me chamam de pretinha gostosa [...]. Eu sinto o soco gelado na boca do estômago, não olho para trás, não revido as ofensas, quero apressar o passo, mas não consigo. Rezo para que nenhum deles venha atrás de mim". A protagonista revive a mesma violência sofrida pelas suas ancestrais e, especificamente, por sua avó, quando um comandante calhorda "desenhou o rosto de Shaira com a ponta dos dedos até pará-los sobre seus lábios. Shaira sentiu o frio invadir o esôfago. – Vocês, macuas, são mesmo rabudas, hein?! Sempre quis saber o que as mamanas lhes ensinam naqueles ritos, dizem que ninguém mexe o rabo como uma macua".

Um pouco adiante, Mikaia pressente: "o mar inunda meu quarto. [...] já não sei onde é raiz onde é ruína". Reconhece que é hora de reencontrar-se no além-mar, atravessar oceanos, voltar a Moçambique, terra de origem (raiz) e de trauma (ruína). Decide, então, enfrentar o vazio das lembranças e completar uma das principais lacunas dessa história a qual une, mas também separa, essas três africanas refugiadas. Há uma forte ausência entre elas, avó e netas, e também entre as irmãs. O regresso à Moçambique também busca resgatar a memória e a presença da mãe. Lá, Mikaia alcança ou toca essa presença em uma aldeia, rodeada por outras mulheres: "Há um círculo. Estou deitada no centro do círculo nua os braços protegem os seios os joelhos tocam os braços sou um casulo estou no útero me banho nas águas de minha mãe fecunda. São mornas as águas do Índico e do útero azul de minha mãe".

O retorno à terra natal é o portal para o ressurgimento do passado e a reconstrução de sua identidade, para travessia e reinserção em uma memória coletiva e conectiva, uma memória ancestral, aquela pela qual um grupo ou uma comunidade cultural se inscreve e se reconhece a si mesma, com o passar das gerações.

Ainda assim, em Nacala, a filha pródiga também é considerada e se sente forasteira, principalmente devido a suas palavras e gestos estranhos, assimilados pela aculturação em sua condição de refugiada. A protagonista constata que seus conterrâneos "não percebem como posso ser de cá se falo tão diferente, se visto tão diferente, se caminho tão diferente". Aos moradores locais, resta apresentar-lhe palavras e histórias para "ensiná-la" a ser de lá. Dessarte, Mikaia infere que "a pertença deve residir na língua, pois são palavras o que todos me oferecem. Eu as aceito, e as repito até decorá-las. Depois desenho com elas o mapa de minha vida e as esqueço, como já esqueci de mim".

Por fim, ainda a se sentir como uma ilha sem arquipélago, Mikaia vai para OnÂ’hipiti (a Ilha de Moçambique), à procura de vestígios do passado da mãe: "Sou expectativa e fuga, assim como minha mãe deve ter sido antes de mim. Já habito essa ilha em antecipação, me agarro à sua ideia de segurança da mesma maneira que me agarraria aos braços da mãe que perdi. Sinto saudades sem conhecê-la". De fato, é ali que Mikaia sente seu útero e seu corpo, em estado líquido, diluírem-se nas águas do grande corpo-oceano e encontrarem-se com a maternidade.

Ainda em relação à linguagem, é importante ressaltar que o romance de Taiane Santi Martins apresenta diversos vocábulos na variante dialetal "Emakhuwa-enahara", comum na região setentrional de Mocambique. Ao final do livro, há um glossário com explicações sobre esses termos; porém, também há a possibilidade de ler a narrativa sem consultá-lo, com o desafio de serem interpretados e compreendidos pelo contexto e/ou pela aproximação com vocábulos da língua portuguesa usada no Brasil. Fiz uma leitura assim, não propriamente pelo desafio, mas por não haver percebido o glossário ao final da publicação. Sugiro, entretanto, sua consulta durante a leitura da narrativa.

Para finalizar, vale destacar que a autora, a qual desponta no panorama literário nacional com o Prêmio Sesc de Literatura 2022, tem uma importante trajetória de formação. Taiane Santi Martins, graduada em História e em Letras, mestra em Literaturas Estrangeiras Modernas e doutora em Escrita Criativa, revela-nos, nos agradecimentos ao final do livro, que, além dessa formação, investiu e dedicou muita atenção e tempo na produção da obra, uma vez que menciona e agradece "às primeiras leituras de Altair Martins, Amilcar Bettega, Charles Monteiro, Gustavo Czekster, Jane Tutikian, José Eduardo Agualusa e Moisés Nascimento" e comenta, também, que passou uma temporada em Moçambique, para pesquisar e produzir seu romance. A autora comprova que, por trás de uma grande obra e de um merecido prêmio, além da criatividade e do talento de quem a escreveu, quase sempre há muita dedicação. Por isso, Taiane, além de excelente escritora, desponta como inspiração para as novas gerações de escritoras e escritores em formação.


01/02/2024

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  Elenilto Saldanha Damasceno

Escritor, revisor, jornalista, editor e professor. Mestre em Letras/Estudos de Literatura e especialista em Literatura Brasileira (UFRGS), graduado em Letras e em Jornalismo (Unisinos). Participante do curso de formação de escritores e de oficina de revisão textual, preparação de originais e leitura crítica (Metamorfose). Autor de "Curta ficção" (Metamorfose, 2023) e "Textos do Novo Testamento nas crônicas de Machado de Assis" (Dialética, 2021), obra finalista do Prêmio Ages 2022 na categoria não ficção. Autor de contos publicados nas coletâneas "Navalha, veneno, mistério" (Metamorfose, 2023), "Contos reunidos 2022" e "De volta aos anos 60" (Metamorfose, 2022), "Prêmio Off Flip de Literatura 2022: conto (Selo Off Flip, 2022), "A vida aqui não é fácil" e "Contos reunidos" (Metamorfose, 2021) e "Prêmio Off Flip de Literatura 2021: conto" (Selo Off Flip, 2021), nesta como finalista. Revisor de "O que sei de você: histórias que poderiam ser suas", de Claudio Varela (Metamorfose, 2023) e "Olhos lilases", de Jonattan Rodriguez Castelli (Metamorfose, 2023). Editor da revista Expressão Digital. Colunista nos sites Artistas Gaúchos, Escrita Criativa e na revista Paranhana Literário. Desde 2008, autor de artigos acadêmicos, artigos de opinião, crônicas, ensaios e resenhas publicados em jornais, revistas e sites. Professor de Língua Portuguesa e de Literatura na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha e professor no curso de formação de escritores da Metamorfose. Mais informações em http://www.eleniltodamasceno.com.

eleniltosd@gmail.com


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