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Resenha

Uma escuridão bonita
Elenilto Saldanha Damasceno

Nas noites iluminadas das cidades contemporâneas, centenas de milhões de olhares fixados em telas esquecem que acima brilham incontáveis estrelas. Quando o brilho das estrelas deixou de despertar nosso olhar? Quando deixamos de olhar para o céu, as nuvens, a Lua e as estrelas?

Um dos elementos universais da infância é o medo da escuridão, mas a infância ainda é tempo de olhar para o alto, à procura de uma nuvem em formato de bicho, de uma estrela cadente realizadora de um sonho, de uma Lua gorda ou fininha. Quando falta luz, quando ocorre uma pane no sistema de distribuição de energia elétrica e uma cidade fica às escuras, as crianças se assustam com a escuridão repentina que, por vezes, desperta sonhos: “o escuro às vezes não é falta de luz mas a presença de um sonho...”. No entanto, cada vez mais, as baterias dos celulares e notebooks estão em prontidão para garantirem suas telas iluminadas, as quais aposentam as velhas velas e ofuscam o encanto e o assombro da inesperada escuridão. Assim, aos poucos, perdem-se as histórias que tornam uma escuridão bonita, como a bonita história criada pelo escritor angolano Ondjaki (Ndalu de Almeida) em sua novela infanto-juvenil, “Uma escuridão bonita”.

Na edição publicada pela editora Pallas em 2021, essa beleza desponta antes mesmo da história, na própria materialidade do livro, com capas, orelhas e quase todas as páginas predominantemente pretas, com exceção de duas. Em contraste, as imagens brancas criadas pelo ilustrador português António Jorge Gonçalves também despontam na escuridão bonita dessas páginas, como pontos-estrelas a configurarem imagens-constelações.

À noite, num bairro pobre de Luanda, “A luz faltou de repente”. Na escuridão, duas personagens adolescentes, sentadas à varanda, iluminam-se de poesia. A ausência da luz obnubila a visão e desperta os outros sentidos, os quais dizem e mostram sem falar e sem ver. Os olhos, aos poucos, habituam-se à obscuridade e passam a rever. Mergulhados em silêncio e sombras, são capturados pelo brilho esquecido das estrelas pirilampas, reencontram-se e reencantam-se com o Universo que “só pode caber no coração das pessoas”.

Descobrem que no coração das pessoas em uma escuridão bonita podem caber “Um poema, uma recordação, um cheiro de infância, um desejo de estrelas” como o desejo de perda definitiva do “saco das guerras” nas quais os pais morriam.

Uma escuridão bonita aproxima e também unifica corações que a compartilham, pois é muito bom dividi-la “em concha e aconchego, como se dois mundos, nessas gotas de negrume, fossem um só”. Aproxima corpos, mãos, lábios e remete as personagens adolescentes ora à infância, ora à mocidade, tais quais anjos em silêncio amoroso, ou em amor silencioso. Desperta epifanias, um arco-íris ou uma ponte para um outro mundo, e faz “brotar magias de simplicidade” que resgatam todas as infâncias em “todas as escuridões do planeta Mundo”, as infâncias ancestrais e suas histórias vivificadas de geração em geração, como a história da avó chamada Dezanove. Uma escuridão bonita ressuscita a escuta e inventa “mais tempo para as pessoas estarem juntas”.

O predomínio da escuridão em relação à luz também nos faz retornar à caverna, às sensações uterinas, à indefinição dos perfis, às sugestões das imagens, ao teatro de sombras à luz de velas, ou às surpreendentes projeções do “Cinema Bu” na espera ansiosa pelos faróis dos automóveis invasivos. Uma escuridão bonita permite a cada um de nós encontrar “as memórias, os sonhos, e os futuros que mais deseja”. Por isso, depois, imersos em claridades feias, “quando formos crescidos vamos gostar de reencontrar estas coisas do nosso antigamente”, de voltar “um bocadinho lᔠonde a imaginação germina. A Literatura é um dos caminhos para esse regresso.

Afinal, por que compartilhamos histórias? Ora pois, “Para a nossa escuridão ficar mais bonita”.

E em que consiste essa beleza? Acredite, sem receios: “a beleza às vezes é um lugar onde o olhar já sabe aquilo que não quer esquecer...”

Mas onde se esconde esse lugar de beleza? Certamente, se esconde na infância, numa escuridão bonita, pois só “Quando somos crianças, o mundo fica bonito de repente. E simples” e emancipado como “uma gaiola ao contrário”, toda aberta.

Ora pois, camarada, uma escuridão é bonita quando nos torna novamente crianças.


17/01/2023

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  Elenilto Saldanha Damasceno

Escritor, revisor, jornalista, editor e professor. Mestre em Letras/Estudos de Literatura e especialista em Literatura Brasileira (UFRGS), graduado em Letras e em Jornalismo (Unisinos). Participante do curso de formação de escritores e de oficina de revisão textual, preparação de originais e leitura crítica (Metamorfose). Autor de "Curta ficção" (Metamorfose, 2023) e "Textos do Novo Testamento nas crônicas de Machado de Assis" (Dialética, 2021), obra finalista do Prêmio Ages 2022 na categoria não ficção. Autor de contos publicados nas coletâneas "Navalha, veneno, mistério" (Metamorfose, 2023), "Contos reunidos 2022" e "De volta aos anos 60" (Metamorfose, 2022), "Prêmio Off Flip de Literatura 2022: conto (Selo Off Flip, 2022), "A vida aqui não é fácil" e "Contos reunidos" (Metamorfose, 2021) e "Prêmio Off Flip de Literatura 2021: conto" (Selo Off Flip, 2021), nesta como finalista. Revisor de "O que sei de você: histórias que poderiam ser suas", de Claudio Varela (Metamorfose, 2023) e "Olhos lilases", de Jonattan Rodriguez Castelli (Metamorfose, 2023). Editor da revista Expressão Digital. Colunista nos sites Artistas Gaúchos, Escrita Criativa e na revista Paranhana Literário. Desde 2008, autor de artigos acadêmicos, artigos de opinião, crônicas, ensaios e resenhas publicados em jornais, revistas e sites. Professor de Língua Portuguesa e de Literatura na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha e professor no curso de formação de escritores da Metamorfose. Mais informações em http://www.eleniltodamasceno.com.

eleniltosd@gmail.com


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