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Música

Sobre a saudade
Solon Saldanha

O compositor carioca Renato Russo estaria completando, nesse mês de março, 60 anos. Foi embora muito antes disso, com 36, em 1996. No ano de sua despedida nasceu meu filho Bolívar, que conseguiu ser ainda mais breve do que ele e nos deixou no começo de 2000. Logo depois dessa perda - que até hoje me marca como ferro em brasa - estive numa loja de discos, em Lajeado, onde morava, para comprar um dos CDs nos quais Renato e sua Legião Urbana nos brindava com um talento musical único. Buscava cópia do seu quinto álbum, aquele de uma capa branca e simples, com letras douradas, em razão da faixa sete. Vento no Litoral era e é a materialização de uma saudade que não tem tamanho. A letra é certeira e traduz essa dor como seria quase impossível fazer melhor. “Aonde está você agora, além de aqui, dentro de mim?”, pergunta um Renato sensível e preciso. E a melodia é lenta, se arrasta e se repete como ondas que batem suaves nas areias de uma praia deserta. Quando ouço, até hoje, parece que sinto o cheiro do mar, a brisa no rosto e estou envolto pela luz de um final de tarde, que vai se entregando lentamente aos braços da noite. É uma solidão não desejada mas necessária, de eterna lembrança e reconstrução.

Renato era Manfredini, de nascimento. Adotou Russo, pelo que consta, em homenagem a três pensadores e artistas que admirava: o pintor francês Henri Rousseau, o filósofo inglês Bertrand Russel e o iluminista suíço Jean-Jacques Rousseau. Era uma pessoa culta, morou em Nova Iorque por dois anos, trabalhou como jornalista, compunha e tocava violão e baixo. Já surfara na carreira solo e com outra banda, antes de fundar a Legião, da qual era líder. Ele e muitos músicos surgidos e formados nos duros tempos da ditadura militar, preocupados com o país e seu futuro, escreveram letras plenas de protesto e de denúncias. Mas Renato, sem fugir do quase compromisso político da época, permaneceu com traços de uma doçura mesmo que ácida e um texto fruto de muita introspecção. Desde menino ele fora um tanto tímido e teve tendências depressivas, o que explodiu em fúria e vício apenas na reta final da vida, diante da percepção do fim inevitável, pela doença sem cura.

Ele sabia bem o que era saudade. E deve ter sentido inclusive daquilo que não teve tempo de viver. Saudade de tudo que ficou apenas como projetos e esperança. Ele sabia que a vida aproxima e separa, que esse movimento pendular de constante ida e volta é o que caracteriza a própria existência. Entendia que nem toda distância é afastamento, tanto que em outro dos versos de Vento no Litoral ele admite: “Vai ser difícil sem você, porque você está comigo o tempo todo”. A pessoa em questão com certeza não estava mais perto, mas paradoxalmente habitava nele viva, numa memória intensa e dolorosa.

Não se pode esquecer que outros compositores souberam definir com a mesma clareza essa palavra. Um deles, provavelmente o maior entre todos os brasileiros, Chico Buarque de Holanda, associa o sentimento com uma dor física. Segundo ele, em Pedaço de Mim, “...a saudade é o pior tormento. É pior do que o esquecimento. É pior do que se entrevar”. O ficar entrevado é a imobilidade trazida pela dor, o torpor que anula o tempo vivido, que faz o olhar ficar perdido quando se olha para o mar sem nada ver. “Oh, metade amputada de mim. Leva o que há de ti. Que a saudade dói latejada. É assim como uma fisgada. No membro que já perdi”, acrescenta ele. No caso desta minha saudade específica – claro que como todas as pessoas, muitas outras tive e tenho na vida – Chico é a ainda mais certeiro em outros versos na mesma obra prima: “...a saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto. Do filho que já morreu”.

Renato Russo me toca mais fundo pela sonoridade da canção. Pelo momento em que eu a conheci. E também pela pitada de esperança que ele coloca na receita. “...E quando vejo o mar. Existe algo que diz. Que a vida continua e se entregar é uma bobagem. Já que você não está aqui. O que posso fazer é cuidar de mim. Quero ser feliz ao menos.”. Juro que tenho tentado. E prometo continuar fazendo isso. O que nunca me impediu de lembrar, por exemplo, da expressão do casal de vendedores daquela loja onde comprei o CD. Quando eu coloquei para ouvir, para ter certeza de que estava comprando o que realmente queria, os fones não tiveram como esconder a lágrima que escorreu furtiva. E também não me impediram de ver o olhar e o sorriso que eles trocaram. Coitados: não havia como entenderem o que eu sentia. Nem saber que, ao final, “...o vento vai levando tudo embora”, como termina a canção.

30/03/2020

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  Solon Saldanha

Solon José da Cunha Saldanha, graduado em jornalismo, tem especialização em Comunicação e Política, além de mestrado em Letras. Com experiencia na mídia impressa, rádio e assessoria de imprensa, atua como revisor estilístico de textos e professor universitário. Escreve contos e crônicas.

solonsaldanha@gmail.com


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