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Literatura

Escreveu. Não leu?
Cássio Pantaleoni

Dia desses, inadvertidamente, no aeroporto de Congonhas, distrai com uma menina. Vendia artigo de rara procura: livro próprio, feito à custa do tempo sobrado e do dinheiro regateado. Tentava, entre sorrisos, um e outro comprador, alguém de interesse simples, pelo amor da arte tão somente, para que daquela obra fizesse a leitura de sua sublime existência. Livro de poesia livre, emancipada, referiu, referindo-se também. Chegou a mim pelas mesmas palavras e prometeu que era apenas o primeiro, pois adorava escrever, um trejeito compulsivo que lhe assombrava o peito.

Podia evitar a pergunta que me surgiu, mas em saguão de aeroportos tudo é despreparo. Questionei: você lê muito? Ah, surpreendente obviedade! Que lia muito pouco, até. Um e nenhum outro autor, apenas o que lhe caía para bem preencher algumas horas de verão ou talvez de tédio.

Comprei o livro, por comiseração, creio. Para depois lembrar tantos outros que nem leram, nem lêem, nem lerão, mas escrevem. Do meu lado, a bagagem média de um executivo. No assento em frente, a bagagem de mão de uma senhora. E o saguão roçado pelas rodinhas das bagagens mais volumosas, carregadas pela mão daqueles que não desistem delas nem mesmo no check-in.

Pois trata-se de bagagem, meus amigos. Em literatura, bagagem é pouco e menos para quem almeja desconstrução, emancipação ou mesmo a reinauguração de um modo narrativo.

Pouco disso para dizer, de alguns autores de rasa bagagem, que seus leitores são de mesma estirpe. Esse é o problema com a literatura que vinga à custa do pensamento pós-moderno, o pensamento que não crê mais nos fundamentos. Desde Nietzsche estamos em litígio com os fundamentos. E há gente que se acostumou a pensar que ler não é fundamental para escrever (Ler, aqui referido, é buscar com cuidado nas entrelinhas os elementos revigorantes de uma ou outra história – não somente a história em si, mas a competência formal de seu autor).

Nada disso é novidade, eu sei. Por verdade, isso alcança o óbvio. Essa interpretação populesca e vulgar da pós-modernidade, que justifica o comportamento da lei do menor esforço – remetendo o próprio pensar reflexivo à categoria de tempo perdido –, é o que predomina com o mais intenso vigor na atualidade. O que realmente parece estar em jogo é a dissolução da ideia de um significado para a literatura e da ideia de um rumo para a literatura. Literatura tornou-se sinônimo de qualquer texto, e a noção de rumo transformou-se em qualquer lugar. Para quer levar bagagem então?

Enquanto lia o livro daquela menina do aeroporto, pensei o quanto custa manter grandes bagagens. Talvez não tenhamos mais tempo e nem fôlego para carregá-las por aí. “Mas que importa? Eu gosto de escrever, oras!”, disse a menina na minha imaginação. Fechei o livro por precaução e embarquei com a bagagem que eu tinha.


20/05/2010

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Comentários:

Oh! Cássio! Teu teu é muito inteligente. Fui lendo, lendo, na expectiva de que houvesse um breve comentário sobre o livro da guria (risos). Mas pelo que entendi - ou estou errado - não leste. Ó dúvida cruel! Ah! Eu, talvez mais escreva do que leio. Os livros que compro, vou lendo devagar. Parece mentira, mas estou lendo alguns com comprei faz três Feiras do Livro. Mas C'est la vie. Grande abraço. Alcir Nicolau Pereira www.alcirnicolau.com
Alcir Nicolau pereira, Porto Alegre 29/08/2010 - 09:39

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  Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni nasceu em agosto de 1963, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Escritor, Mestre em Filosofia pela PUCRS e profissional da área de Tecnologia da Informação. Vencedor do II Premio Guavira de Literatura, na categoria conto, em 2013, com o livro “A sede das pedras”; finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”. Segundo lugar na 21a. Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski; duas vezes finalista no Concurso de Contos Machado de Assis, do SESC/DF; duas vezes finalista no Premio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Desenvolve workshops sobre leitura, técnicas de escrita ficcional e filosofia aplicada à literatura. Obras Publicadas: “De vagar o sempre” – Contos – 2015, “O segredo do meu irmão” – Novela infantojuvenil – 2014, “A corda que acorda” – Infantil – 2014, “A sede das pedras” – Contos – 2012, “Histórias para quem gosta de contar histórias” – Contos – 2010, “Ninguém disse que era assim” – Novela – 2006, “Os despertos” – Novela – 2000.

cassio@8inverso.com.br
www.sextadepalavras.blogspot.com
https://www.facebook.com/cassio.pantaleoni.9


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