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O fim do Livro
Cássio Pantaleoni

Não se apresse em imaginar que me refiro, aqui, à extinção do livro tal qual o conhecemos, como se ele – o livro – estivesse condenado a ser substituído por publicações em meios eletrônicos, ou por narrativas extemporâneas, em encontros eventuais – a mera “contação” de histórias. O fim ora sugerido está associado ao sentido de objetivo ou intenção. Particularmente, prefiro o sentido de intenção, pois quem escreve tem sempre alguma intenção, seja esta simplesmente um exercício de vaidade, seja a frugal tentativa de dizer alguma coisa para alguém que esteja interessado.

A especial Feira do Livro de Porto Alegre conclui sua 54ª. Edição deixando, ao menos para mim, algumas questões em aberto. Entretanto, devo admitir que, apenas eventualmente, tais questões se tornam pauta de reflexão. Não pretendo por ora trazer todas elas para o campo da discussão aberta. Apenas pretendo pontuar uma em particular – será que podemos falar em uma intenção comum na produção literária?

Essa questão poderia ser colocada ao modo de quem pretende descobrir algo sobre si mesmo, sobre sua disposição particular para o empenho literário, como se pretendesse descobrir por que escreve, ou ainda, por que lê.

Longe das respostas mais cínicas ou sinceras – como, por exemplo, a resposta de Paulo Francis, que dizia que escrevia apenas por que procurava meios alternativos para conquistar fama e dinheiro – encontramos a região adequada de discussão, se e somente se, estendemos à literatura a função propedêutica. Nesse sentido, é como se procurássemos afirmar que a literatura proporciona uma experiência, de caráter exemplar, sem que necessariamente a vivenciemos na vida prática, no dia-a-dia. Admito que muitos não concordam com isso e aludem à função de entretenimento da literatura. Aceito essa perspectiva, pois vivemos de fato a época da distração, a época em que se quer ser feliz a qualquer custo e o mais rapidamente possível, e isso não pode ser apartado da análise que ora proponho.

Seja mero entretenimento ou pedagogia alternativa, a produção literária recai em, pelo menos, duas categorias: literatura de boa qualidade e literatura de má qualidade. Essa, enfim, é a discussão subliminar.

Se vamos ao teatro, ao cinema, ou mesmo à feira de artesanato, apenas com o objetivo de passar o tempo, de nos entre-termos na passagem do tempo, esperamos que aquilo que nos é oferecido tenha alguma qualidade. Se buscamos um curso de formação esperamos, de modo semelhante, que o nível de qualidade dos instrutores seja compatível com certos critérios avaliativos. O que queremos é que a experiência seja positiva, queremos ficar satisfeitos. Claro que as expectativas de um não coincidem com as expectativas de outro, mas não podemos negar que existe o denominador comum, que determina, ao menos, os critérios mínimos de aceitação. Não obstante, não podemos esquecer que, para organizar uma peça teatral, montar um filme, desenvolver o arranjo de uma música ou organizar e manter um curso de formação, o esforço e o investimento requeridos são significativamente maiores do que para escrever um livro, pois o processo de criação envolve um maior número de pessoas.

Creio que se torna razoavelmente mais simples produzir textos – entendendo-os como manifestação escrita dos pensamentos de uma certa pessoa. Somos todos livres para produzi-los, com ou sem formação específica, e publicá-los requer um investimento significativamente menor que aqueles requeridos para produzir um filme, uma peça de teatro ou um curso de formação. Assim, é fato que há muita produção literária que não respeita e não alcança os critérios mínimos de qualidade para entreter e proporcionar uma experiência que possa nos dizer alguma coisa do mundo sem que necessitemos vivenciá-la na vida prática. Contudo, devo reconhecer a tibieza de toda essa argumentação.

Vejamos de outro modo, então – sem as exigências categóricas da academia (mesmo correndo o risco de uma simplificação grosseira). Qualquer obra literária discorre sobre um tema, o assunto em pauta. Esse assunto pode ser “batido” ou não. O modo como discorre sobre o tema, ou seja, o estilo, indica a relação direta do autor com o tema, de acordo com o seu modo de dissertar ou narrar. Mesmo um assunto (tema) “batido” pode ser revitalizado pela maestria narrativa ou dissertativa do autor. Temos assim dois aspectos em jogo: o conteúdo e a forma. A grande dificuldade, no entanto, é que, em um país onde apenas 25% da população possui a capacidade de compreender e interpretar textos, nem todos os nossos leitores estão preparados para separar o joio do trigo. Isso significa que o contingente de pessoas, nessa amostra de 25%, dispostos a escrever e capazes de conceder valor àquilo que escrevem é, provavelmente, bem restrito. Logo, a possibilidade da criação de grandes obras está associada a um pequeno grupo de pessoas, bem como a capacidade de compreender e discriminar o que é uma grande obra de uma obra comum.

Minha percepção, muito particular, é que existe uma geração de autores que já não está disposta a investir muito tempo em compreender e exercitar os aspectos norteadores daquilo que se define como qualitativamente superior. Tenho a impressão de que atualmente se almeja concluir tudo muito rapidamente. Vivemos de superficialidade analítica, onde, se não pudermos fazer alguma coisa sem muito esforço, então não vale a pena ser feita. As implicações no campo da moral são monstruosas, mas não quero me desviar do assunto. O fato é que um grande número de “escritores” está produzindo textos a partir dessa “escola” de pensamento. Eis a razão da proliferação dos Blog’s: diga qualquer coisa que você queira dizer, publique o mais rapidamente possível na internet, encurtando o caminho da conquista de leitores. É bastante democrático, sem dúvida. Contudo, o que se torna disponível em quantidade é o supérfluo, e vamos aos costumes, a formação de uma crença comum de que não há mais peculiaridades no mundo e que também os pensamentos mais elaborados talvez sejam supérfluos.

Insisto que o fim da literatura, enquanto sentido de intenção, deva se nortear por aquilo que, até pouco tempo atrás, ela mais se ocupava – uma propedêutica pelas vias do entretenimento. Nem só um ou outro lado, mas ambos em uma convergência promissora, capaz de delinear, em seus entremeios, a visão crítica do mundo. Devemos renunciar às produções escritas construídas sobre o solo do conhecimento imperfeito das possibilidades da prosa e da dissertação, que almejam preliminarmente às altas aspirações de formar a opinião do mundo. Falo da reproposição da arte, em sua mais aflita manifestação, dada pela necessidade e urgência de uma estética literária que resgate os valores da forma e conteúdo concomitantemente.

Se aspirarmos reconsiderar o fim da literatura pelas vias do norteamento estético, precisamos recolocar a questão por que escrevo? ou por que leio? corajosamente. Se acaso a pergunta não eliciar a nossa necessidade mais profunda de admirar as possibilidades criativas de conjugação da forma e conteúdo, aquilo que dá valor ao texto escrito – livre das estruturações óbvias e dos conteúdos repetidos –, então devemos admitir nossa superficialidade e mediocridade, pois quem não ama a criação de valor está condenando a literatura – agora no sentido mais escatológico – ao seu fim.


10/12/2008

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Comentários:

Não restam dúvidas que se deve primar pela literatura com riqueza estética... difícil é entender como pode a academia de letras premiar alguém considerando os números de edições vendidas. Como trabalhar a literatura pura e fortificar este conhecimento para que então ocorra a capacidade de depuração da leitura num país em que as obras de valor possuem também um valor que privilegia poucos leitores?
Zoraida, Canoas 26/01/2012 - 17:55

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  Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni nasceu em agosto de 1963, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Escritor, Mestre em Filosofia pela PUCRS e profissional da área de Tecnologia da Informação. Vencedor do II Premio Guavira de Literatura, na categoria conto, em 2013, com o livro “A sede das pedras”; finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”. Segundo lugar na 21a. Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski; duas vezes finalista no Concurso de Contos Machado de Assis, do SESC/DF; duas vezes finalista no Premio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Desenvolve workshops sobre leitura, técnicas de escrita ficcional e filosofia aplicada à literatura. Obras Publicadas: “De vagar o sempre” – Contos – 2015, “O segredo do meu irmão” – Novela infantojuvenil – 2014, “A corda que acorda” – Infantil – 2014, “A sede das pedras” – Contos – 2012, “Histórias para quem gosta de contar histórias” – Contos – 2010, “Ninguém disse que era assim” – Novela – 2006, “Os despertos” – Novela – 2000.

cassio@8inverso.com.br
www.sextadepalavras.blogspot.com
https://www.facebook.com/cassio.pantaleoni.9


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