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Literatura

Cidade Poema: você de frente com o verso
Sidnei Schneider

O poeta e artista plástico Pedro Geraldo Escosteguy, membro do nacionalmente conceituado Grupo Quixote (1947 a 1961), pretendeu jogar poemas do alto de um avião sobre toda cidade de Porto Alegre, numa época em que folhetos de propaganda eram assim distribuídos, para alegria da criançada que corria atrás dos papéis de variadas cores e os juntava. Estimulado por essa disposição anterior, confesso que sonhei escrever poemas nas paredes cegas dos grandes edifícios, as que os nossos vizinhos de língua hispânica chamam de medianeiras, no início dos anos 90. A poeta e contista Laís Chaffe foi além: tendo vivenciado a poesia como algo cotidiano e natural, em que uma reclamação bem-humorada do pai podia ser um“apedreja essa mão vil que te afaga/ escarra nessa boca que te beija”, os conhecidos Versos Íntimos1 de Augusto dos Anjos, nunca entendeu o porquê de deixá-la recolhida apenas ao âmbito da vida literária. Realizou, como se verá, o que outros, iguais a nós, apenas imaginaram, através do movimento de divulgação de poesia Cidade Poema.

Na rua há três anos, o projeto vem espalhando poesia na capital gaúchaatravés de outdoors, afixes na traseira dos ônibus, minimetragens, decalques gigantes, bolachas de chope, imãs de geladeira, encontros públicos, camisetas, performances teatrais, edição de livros e outros suportes. Contabiliza a participação de mais de setenta poetas e artistas ilustradores, designers, fotógrafos, equipe de filmagem, músicos, gente de teatro, produtores, etc.

Um pouco antes do primeiro lançamento, quando Laís solicitou ao poeta e psiquiatra Celso Gutfreind um poema para veicular em outdoors artisticamente ilustrados, este imaginou que se tratava de puro delírio, conforme entre risos admitiria depois. Em abril de 2009, no entanto, um poema seu, com ilustração de Guilherme Moojen e arte final de Orlando Bona Filho, estava colado em 25 pontos da cidade.

 

REENCONTRO AO LONGO

Esse preceito está de pé:
Todo ex-amor é um Deus ainda
Nós é que perdemos a fé

Celso Gutfreind 2

Em outra iniciativa, durante todo aquele abril, 30 linhas de ônibus circularam pela capital gaúcha exibindo busdoors (adesivos grandes sobre a parte traseira dos ônibus), com poemas e fotografias à cores de Fernanda Davoglio.

 

NECESSIDADE

Preciso de outras mãos
pra desatar meus nós.
Preciso teus dedos.
Preciso de nós.

Laís Chaffe

Em parceria com a FestiPoa Literária, organizada por Fernando Ramos, ainda era editado um conjunto de duas mil bolachas de chope, com arte do cartunista Augusto Bier e versos de cinco poetas, utilizadas efetivamente pelo bar Toca da Coruja, na Cidade Baixa. Tudo isso articulado com a contribuição voluntária dos artistas, muitos apoios e um mínimo de gastos. Era o início, apenas o começo.

 

fim da utopia
ninguém quer dividir nada
só a conta

Ricardo Silvestrin 3

Aos poetas, no auge do neoliberalismo e da ideia de que teríamos chegado ao melhor dos mundos com o suposto fim da história, era insistentemente perguntado se a poesia ainda fazia sentido, se tinha ainda um lugar na sociedade, se possuía ainda alguma função e demais finezas do tipo. Tivemos que trabalhar para fugir dessa cilada e da consequente perda de espaço nos meios de comunicação, que, se já vinha de algum tempo, acentuou-se. Daí que, em Porto Alegre e no Brasil inteiro, surgiu uma profusão de saraus, debates, projetos, festivais, muitos conquistando regularidade e bom público. O Cidade Poema insere-se nesse movimento, ainda que com uma diferença bem característica. O foco está na recepção ampla, no possível e novo leitor, muitas vezes distante do meio literário, de livrarias e bibliotecas, mas plenamente capaz de apreciar a poesia e as artes que a ela vão sendo associadas pelo projeto. Desde o nascedouro, inspirada na repercussão causada pelos seus próprios poemas afixados nas janelas dos coletivos pelo concurso Poemas no Ônibus, Laís focou na multidão.

 

MINIMETRAGENS

Os minimetragens Cidade Poema, dirigidos por Laís, com equipe de filmagem e edição, foram a maneira de avançar, com cada poeta dizendo um poema numa edição profissional e musicada, para um projeto de documentário ainda a ser viabilizado economicamente. Beto Chedid e Yanto Laitano fizeram e interpretaram a música. O canto da Cicatriz, outro documentário da diretora, sobre violência sexual contra meninas, já havia sido multipremiado. Inicialmente, 15 minimetragens passaram antes dos filmes nas três salas do Cinesystem, ao longo de um mês. Outros foram se agregando, sendo repassados em festivais, feiras do livro e exposições através de telas de tevê. Alguns podem ser vistos no site Vimeo, buscando-se Cidade Poema. Outros outdoors com poemas e arte foram espalhados, à modesta razão de um por ano, assim como 20 novos busdoors em 2010.

 

Ei!
Você está lendo um poema.
Pare de dizer que não gosta de ler,
que poesia é coisa de viado.
Você está lendo, não está?

Paulo Seben 4

A Exposição Cidade Poema, com fotos de 40 poetas clicados em preto & branco longe do computador e da biblioteca, por Leonardo Brasiliense e Fernanda Davoglio, estreou no saguão da Câmara de Vereadores, com performance da atriz Deborah Finocchiaro, passou pela Feira do Livro de Porto Alegre e segue sua trajetória. Poesia é um santo remédio busca levar poetas e poemas a hospitais e instituições de saúde. Adesivos gigantes com poemas ilustrados decoram permanentemente sedes de atendimento e diagnóstico da Unimed.

 

SEM CORDÃO

Frase pintada
Acima da janela
Da maternidade
Voltada para o leste
Até o sol nasce aqui

Augusto Bier 5

Um adesivo com poema de Luis Fernando Verissimo, colaborador do projeto, foi aplicado na sede do Núcleo de Ecojornalistas, na Associação Rio-Grandense de Imprensa. Dezenas de outros, ilustrados por Auracebio Pereira, foram expostos nos elevadores e espelhos do Shoping Total, na Feira do Livro de Porto Alegre, áreas adulta e infantil. Além desses, há os que permanecem em escolas particulares e municipais, gabinetes públicos, três livrarias, etc. Poetas locais, Fernando Pessoa e John Keats dizem presente. Banners azuis e amarelos posicionados em praça pública ao feitio das campanhas eleitorais (parceria com o Castelinho Cultural do Alto da Bronze, dirigido pela poeta Sandra Santos), classificados poéticos na sessão Diversos do Correio do Povo (representação local do movimento #Versificados), encarte no jornal de literatura Vaia, milhares de ímãs de geladeira, camisetas postas à venda, a criatividade não tem limite.

 

DESMATAMENTO

"Um dia, meu filho",
disse o velho índio
indicando o topo das árvores
como quem afasta um véu,
"tudo isso será céu."

Luis Fernando Verissimo6

Livros, aos quais o projeto quer levar o público, não poderiam faltar. A coleção Cidade Poema, da editora Casa Verde, publicou, entre outros, Poesia sem pele, de Lau Siqueira, gaúcho radicado em João Pessoa. Mais seis infantis, os PoeMitos, mitologia grega e indígena em versos, com ilustrações de Alexandre Oliveira. Um E-book, parceria com a WW Livros, de Marcelo Spalding, está disponível no site oficial. Saraus, encontros e bate-papos costumam estar na programação.

 

CONDIÇÃO HUMANA      

pequenas multidões
no desamparo das horas
sumidas

pequenos desastres
e uma extrema
coragem

Lau Siqueira7

Apesar das parcerias e apoios empresariais, muitas vezes falta fôlego econômico para ir além com tantas propostas, como o Doutores da Poesia, que pretende percorrer hospitais com injeções poéticas, o que já entusiasmou um Centro de Oncologia.  Agora, o projeto está aprovado pela lei Rouanet para captar incentivos fiscais, para quem quiser associar sua empresa a essa boa ideia.

 

DEMANDA E INSERÇÃO

Essa aposta na receptividade da multidão, em que basta o sujeito cruzar pelo poema para ser atingido por ele, levada às últimas consequências, acaba por demandar uma poética, que não se reduz, evidentemente, às dimensões do texto nem ao abandono da composição de um livro, e parece ainda estar em gestação. João Cabral de Melo Neto, na conferência Poesia e composição (1952), problematizou um tema ainda em discussão e aqui relevante: a modernidade da poesia relacionada à perda do leitor, “anulando, do momento da composição, a contraparte do autor na relação literária, que é o leitor e sua necessidade”.8 Analisa aquele tipo de poeta que busca o mais exclusivo de si, pelo excessivo e secreto subjetivismo ou pela autoimposição de barreiras formais cada vez maiores, tornando o seu trabalho praticamente incomunicável: “ele se defende do homem e da rua dos homens, pois ele sabe que na linguagem comum e na vida em comum essa pequena mitologia privada se dissipará” e “sabendo que poucos serão capazes de entender perfeitamente sua linguagem secreta, ele conta também com aqueles que serão capazes de mal-entendê-la. Isto é, com o leitor ativo, capaz de deduzir uma mensagem arbitrária do código que não pode decifrar”.9

Para Cabral, esse poeta “apenas dá de si. A outra missão do leitor, no ato literário, a saber, a de colaborar indiretamente na criação, é desconhecida ou negada. Este poeta não quer receber nada nem compreende que sua riqueza só pode ter origem na realidade. Na sua literatura existe apenas uma metade, a do criador. A outra metade, indispensável a qualquer coisa que se comunica, ele a ignora. Ele se julga a parte essencial, a primeira, do ato literário. Se a segunda não existe agora, existirá algum dia – e ele se orgulha de escrever para daqui a vinte anos. Mas ele esquece o mais importante. Nessa relação o leitor não é apenas o consumidor. O consumidor é, aqui, parte ativa”.10

A questão, ainda em causa na contemporaneidade, teve, como não podia deixar de ser, respostas diversas. Alguns buscaram usufruir das formas populares, modificadas pela ação do poeta culto, como o fez com maestria e alcance o próprio Cabral. Os concretistas, de sua parte, quiseram modernizar a poesia de acordo com a sua poética peculiar, para aproximá-la do público: ideia abandonada antes mesmo da apresentação do chamado “plano-piloto”, como observou o poeta e crítico Paulo Franchetti.11 Mario Quintana criou um público leitor de poesia no Rio Grande do Sul, através do longo tempo em que contou com sua coluna diária, contudo também foi moldado pela experiência e por esse público, atingindo a nem sempre fácil simplicidade e o bom-humor, ainda que continuasse um poeta essencialmente lírico. Ferreira Gullar, com passagem pelo concretismo, aproximou-se da literatura de cordel e das causas populares, para, em seguida, buscar uma espacialização do verso na página derivada de Mallarmè, mantendo na sua poesia e personalidade, durante aquela época pelo menos, o vínculo político com a ótica popular. Paulo Leminski, flertando com o concretismo, procurou superá-lo voltando inclusive à utilização da rima, porém de modo peculiar. Isso para ficarmos em alguns exemplos, todavia não exatamente copiáveis, como sabem todos os que criam, pois a poesia brasileira atual precisará encontrar seus próprios caminhos de atingir o público.

Alguém poderia, ainda, perguntar se Porto Alegre é uma Cidade Poema. Se os poetas poderiam captar poesia de suas ruas sujas, de sua gente sofrida, de suas misérias; se os artistas da imagem poderiam retirar cores diferentes daquele amarelo-desespero descrito por Dyonélio Machado, em Os ratos, entre os edifícios do centro; já que, evidentemente, ninguém costuma duvidar da possibilidade da poesia a partir de alegrias e coisas boas que a cidade certamente possui. Existe a poesia das coisas e a poesia escrita, mas esta última, a arte das palavras, não admite cercas, seu tema é tudo o que há e diz respeito ao humano, motivo de celebração ou crítica. A cidade, por sua vez, e também o país e o mundo onde ela se insere, têm lá seus problemas. O projeto Cidade Poema e os que dele participam querem fazê-la melhor, sem perder de vista o entorno.

 

Referências Bibliográficas:

1 ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
2 GUTFREIND, Celso. A gema e o amarelo. Porto alegre: Tchê!, 1988.
3 SILVESTRIN, Ricardo. O menos vendido. São Paulo: Nankin Editorial, 2006.
4 SEBEN, Paulo. Poemas podres. Porto Alegre: AMEOP, 2004.
5 BIER, Augusto Franke. Serenata para uma janela fechada. Porto Alegre: Nova Roma, 2009.
6 VERISSIMO, Luis Fernando. Poesia numa hora dessas?! Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
7 SIQUEIRA, Lau. Poesia sem pele. Porto Alegre: Casa Verde, 2011.
8 MELO NETO, João Cabral de. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 53.
9 Idem, p. 68.
10 Ibidem, pp. 68-69.
11 FRANCHETTI, Paulo. Leminski e o haikai, in A pau a pedra a fogo a pique: dez estudos sobre a obra de Paulo Leminski. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2010.

 

Publicado originalmente na revista Urbe nº 2, Porto Alegre, abr. 2012, pp. 26-31, editada pela Pubblicato e financiada pelo projeto Fumproarte.

Poetas participantes:

Adair Philippsen
Alexandre Brito
Ana Mariano
Ana Mello
Andréia Laimer
Armindo Trevisan
Augusto Franke Bier
Berenice Sica Lamas
Carlos Urbim
Celso Gutfreind
Christina Dias
Denair Guzon
Diego Grando
Diego Petrarca
Dilan Camargo
dois Santos dos Santos
Edson Cruz
Everton Behenck
Fabrício Carpinejar
Flávio Brasil
Fred Maia
Jaime Vaz Brasil
João Ângelo Salvadori
José Antônio Silva
José Eduardo Degrazia
Laís Chaffe
Lau Siqueira
Liana Timm
Luís Augusto Junges Lopes
Luis Fernando Verissimo
Luiz Coronel
Luiz de Miranda
Marcelo Pires
Marcelo Spalding
Marco de Menezes
Maria Carpi
Marlon de Almeida
Marô Barbieri
Nei Duclós
Orlando Bona Filho
Nilva Ferraro
Paco Cac
Paula Taitelbaum
Paulo Bentancur
Paulo Seben
Pedro Stiehl
Ricardo Portugal
Ricardo Silvestrin
Ronald Augusto
Sandra Santos
Sergio Napp
Sidnei Schneider
Silvestrin Roberto
Susana Vernieri
Telma Scherer
Thomaz Albornoz Neves
Walmor Santos


04/07/2012

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Comentários:

amo o rodeio bonito
lurdes, mallet 04/09/2012 - 18:59

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  Sidnei Schneider

SIDNEI SCHNEIDER é poeta, contista e tradutor. Publicou os livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), a tradução Versos Singelos-José Martí (SBS, 1997) e o volume de contos Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), Antologia do Sul (Assembleia Legislativa, Porto Alegre, 2001), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011) e de mais de uma dezena de antologias. 1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM (1995), 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS (2003) e outras premiações. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.

sidneischneider@gmail.com


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