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Jonathan Lee fala sobre fisgar o leitor com a primeira linha
Caroline Rodrigues

Ursula LeGuin, em seu ensaio intitulado "The Fisherwoman's Daughter" [A filha da pescadora, tradução literal], escreve que "primeiras frases são portas para mundos". Gosto dessa simplicidade. Se escrever ficção é um processo de resolução de problemas lúdico, o problema a ser resolvido com aberturas pode ser este: Se a porta de entrada demonstra estar rangendo demais, ou ser difícil demais de destrancar, ninguém vai se dar ao trabalho de passar por ela. Mas o oposto é um problema também. Se a abertura de um livro parece convidativa demais - não uma porta entreaberta, mas aberta de par em par para os elementos - o leitor sente cheiro de desespero ao invés de cheiro de pão recém assado. As categorias daqueles que fazem esforço demais para seduzi-lo para dentro do espaço deles incluem assassinos em série, lunáticos e pessoas com um sistema séptico tão lascado que eles não querem nem que o corretor de imóveis descubra. Ninguém quer sentir quando o escritor está se esforçando demais.

E, de novo - ou assim vai meu próprio padrão destrutivo de pensamento quando estou tentando começar -, se a abertura for uma frase que capture um equilíbrio perfeito entre resistência e convite, mas, pela pressão da revisão, começa a parecer trabalhada demais? Quando vejo uma dessas placas em uma festa que pede que eu retire meus sapatos na entrada, a primeira coisa que eu penso - com um choque de terror - é que a opção de sair de fininho já era. Alguém quer mesmo adentrar um mundo de um anfitrião exigente ao extremo? Você continuaria lendo Moby Dick se a frase de abertura fosse "Por favor, certifique-se de me chamar de Ismael, ou então pelo meu nome completo que é..."? Menos cativante. A abertura fica emaranhada. A baleia branca - o leitor perfeito - escapa mais uma vez.

Quando escrevi meu romance High Dive [sem tradução no Brasil], que é sobre uma tentativa de assassinato feita pelo IRA a Margaret Thatcher em 1984, e a linha por vezes tênue entre o que chamamos de bem e mal, tentei diversas aberturas. Eu ficava tentando parecer esperto. Então, um dia, ao escrever o que eu achava ser uma versão simplória demais do que eu queria com a abertura, eu tropecei em uma primeira frase que funcionou: "Quando Dan tinha dezoito, um homem que ele não conhecia o levou para uma viagem além da fronteira". De repente, eu soube que era aí que eu precisava começar o livro: a iniciação deste menino no IRA; a primeira vez que ele passou um limite. Eu também gostei que esta primeira frase - que na minha cabeça é a sentença de morte de Dan - não tinha vírgulas. Não desinfetada, a ponto de quase desaparecer, como são as entradas de algumas pessoas, mas limpa e sem obstáculos, como portas atraentes geralmente são.

Toni Morrison era incrível em aberturas que eram ágeis e puras e, ao mesmo tempo, repletas de mistério. Eu com frequência revisito o começo do seu Amada enquanto bato minha cabeça contra a escrivaninha, tentando me lembrar como é uma boa escrita:

"O 124 era rancoroso. Cheio de um veneno de bebê".

É quase como um poema. Mas não é um poema impossível de decifrar. E nem se explica demais em um esforço para ser complacente em excesso. Enquanto outros escritores estão limpando a garganta para explicar as regras da casa, Morrison já conduziu você porta adentro - você nem tem tempo de olhar para os seus cadarços. Você nem sequer se lembra que tem cadarços! Há mistérios na sua linha de abertura (Quem ou o que é "124"? Quem é esse "bebê"? Qual é a fonte do rancor e do veneno?) mas não são os mistérios óbvios e convidativos que às vezes ensinam para os escritores colocarem na sua primeira página: corpos encontrados ou escondidos; armas apontadas ou tiros disparados; protagonistas que acordam (e bocejam) sem saber onde estão.

Uma das aberturas mais perfeitamente dispostas que li recentemente está em Luxúria, de Raven Leilani:

"Da primeira vez que transamos, ambos estamos de roupa, sentados diante das nossas mesas em horário comercial, mergulhados na luz azul da tela dos computadores".

Pegar um quadro familiar e convidativo - uma cena de sexo -, mas revertê-lo, oração por oração, é inteligente. Você pensa que está ali, na intimidade de um espaço privado. Mas então as roupas continuam, e o relógio do escritório faz tique-taque, e o computar pisca: isto é trabalho. Mas é a segunda linha de Luxúria - não a entrada, mas o corredor - onde o mundo e o tom do livro realmente se abrem: "Ele está em Uptown Manhattan processando um novo lote de microfichas, e eu estou em Downtown batendo as emendas de um novo livro sobre um labrador detetive". Esta segunda linha constrói o caminho da primeira, ao mesmo tempo em que também desestabiliza o chão debaixo de nossos pés. Captura os altos e baixos de um mundo muito específico: o suposto glamour do mundo da escrita, da publicação. Um mundo de aberturas, escritas e corrigidas, banhado pela luz azul do computador.

***

Tradução feita com exclusividade por Caroline Rodrigues. Se você tem interesse em traduzir seus textos, confira o trabalho da autora em www.carolinerodrigues.com.br

Confira a publicação original em inglês em https://lithub.com/jonathan-lee-on-hooking-a-reader-with-the-first-line/


15/08/2022

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  Caroline Rodrigues

Caroline Rodrigues é tradutora e escritora. Nasceu em São Sebastião do Caí/RS, em 1977, e atualmente mora em São Leopoldo/RS. Formada em Letras, Mestra em Linguística Aplicada e Pós-graduada em Tradução. Egressa do Curso de Formação de Escritores da Metamorfose, tem contos publicados em antologias da editora, publica textos em seu blog, na Revista Parêntese e no blog da Escritor Brasileiro. É autora do livro de contos Sempre tem uma cachoeira, pela Editora Metamorfose. Em 2022, participa da Oficina de Criação Literária da PUCRS.

caroline.letras@gmail.com


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