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Literatura

O que aprendi com Gulliver
Solon Saldanha

Enquanto meu pai tinha condições financeiras melhores, costumava me presentear com livros. Falo do final dos anos 1960. Depois, quando as coisas pioraram muito, passei a beber de outra fonte, tendo trocado o que vinha de livrarias por aquilo que estava armazenado em bibliotecas. Mas sempre com o estímulo dado por ele. Foi assim que ainda muito jovem li diversos clássicos da literatura. Alguns marcaram profundamente, deixando na minha memória mais do que fragmentos da história em si, mas também muito daquilo que ela contava sem contar diretamente. Um desses exemplos é Viagens de Gulliver, obra escrita por Jonathan Swift, em 1726.



Esse autor irlandês – que por coincidência também era nascido em 30 de novembro, como eu – foi reconhecido não apenas pelo seu talento, mas pelo imenso sarcasmo. Em praticamente todos os seus livros havia forte crítica às formas de pensar e à organização social; à estrutura dos governos e das religiões. O seu colega escritor, mas francês e no século XX, André Breton, entende que Swift foi o precursor do uso do humor negro como recurso, nas obras literárias. Isso pode ser confirmado, por exemplo, no texto Uma Modesta Proposta, de 1729. Nele, sugere que todas as crianças da Irlanda fossem mortas, para evitar que filhos de pessoas pobres se tornassem fardo para seus pais e para o país. Sua generalização para a totalidade dos pequenos irlandeses se deve à visão de que a política inglesa de colonização havia mesmo deixado todos pobres em seu país. Esses “civilizados” colonizadores traziam como consequência falta de trabalho, de comida e imigração em massa para os Estados Unidos. Acrescentava apenas que os “invasores” fossem encarregados de amamentá-los, no primeiro ano de vida, para que bem gordinhos servissem como aperitivo nos seus jantares. E ainda que pelo menos uns 20 mil fossem poupados, como reserva para procriação que impedisse a extinção dos irlandeses no futuro.

Viagens de Gulliver relata as aventuras de Lemuel Gulliver, um médico cirurgião que é o único sobrevivente de um naufrágio. Após lutar por muito tempo contra as águas ele consegue, exausto, alcançar uma praia. Adormece, devido ao esforço, e ao acordar se percebe amarrado ao chão, da cabeça aos pés. Mais do que isso, nota estar cercado por muitos homenzinhos de uns 16 centímetros de altura. Neste local, de nome Lilipute e onde por acidente foi parar, ele era um gigante. Os pequenos tinham um temperamento feroz e se dividiam em dois grupos políticos que resolviam suas divergências em disputas. Quando vai embora, Lemuel chega a outro local, este chamado Broddingnag, onde se vê numa situação totalmente inversa: ele é muito pequeno, diante de gigantes que são pelo menos 12 vezes maiores. Mas esses são avessos à violência e vivem em paz, apesar da soberba de seus governantes.

O texto de Jonathan Swift tem outras duas paragens importantes do mesmo aventureiro. A terceira se dá em Laputa, uma ilha flutuante onde muito se pensa e pouco se realiza. E a quarta no país dos houyhnhnms, que são cavalos virtuosos e dotados de inteligência, que usam como seus serviçais homens grosseiros, rudes e desleixados. Na verdade, a saga ainda prossegue por países imaginários, como Glubbdubdrib e Luggnagg, além do Japão, onde o cirurgião tenta explicar às pessoas como funcionam as coisas na Inglaterra. Irônico é que o autor era um rabugento que pretendeu com esse livro, conforme confidenciou depois, agredir o mundo, retratando a natureza humana e sua mesquinhez. Entretanto, a obra acabou caindo no agrado até mesmo do público infanto-juvenil, ao longo do tempo, devido a uma prosa que se revelou deliciosa e o tom fabulesco da narrativa. E chegou a ser reproduzida como sendo uma comédia, em alguns momentos.

Swift era filho de uma inglesa radicada na Irlanda, sendo que seu pai morreu antes do seu nascimento. Foram os tios que custearam seus estudos, para formar-se bacharel em artes. Morou em Londres e foi secretário de um diplomata, parente de sua mãe. Aproveitou para fazer mestrado em Oxford e terminou ordenado padre. Mas seus textos irônicos sempre lhe custaram caro e perdeu vários cargos devido a eles. Ficou voluntariamente recluso no final da vida, enquanto seguia produzindo ensaios satíricos. Entendia que todos os males sociais eram decorrentes da estupidez humana, chegando a desejar ficar louco para esquecer isso tudo. Morreu em 1745, provavelmente com Alzheimer – isso nunca chegou a ser confirmado.

Quando li o livro não tinha ainda capacidade e discernimento para entender tudo o que ele continha. Mas sempre me assombrou de um jeito muito especial aquele fato de um mesmo homem poder ser um gigante e um pigmeu, apenas em função do momento e do local. E, ao menos na minha interpretação infantil, aquela foi a primeira lição que eu recebi, via literatura, sobre o que deve ser a humildade. Porque nunca se pode ter certeza do nosso real tamanho, em relação às demais pessoas.

02/06/2021

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  Solon Saldanha

Solon José da Cunha Saldanha, graduado em jornalismo, tem especialização em Comunicação e Política, além de mestrado em Letras. Com experiencia na mídia impressa, rádio e assessoria de imprensa, atua como revisor estilístico de textos e professor universitário. Escreve contos e crônicas.

solonsaldanha@gmail.com


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