Uma vez fui convidado pela TVE aqui em Porto Alegre para entrevistar o Décio
Pignatari. Relatei a ele uma das cartas do poeta Paulo Leminski a Régis
Bonvincino. Nessa carta, Leminski fala de um episódio que denominou como
uma transmissão da lâmpada. A expressão remete a quando
um mestre diz algo para os discípulos que funciona como um insight, cai
a ficha, ao mesmo tempo em que se cria um novo desafio. Aconteceu quando Paulo
e outros jovens poetas estavam reunidos com Pignatari, que lhes disse algo como
“o concretismo tem que acabar; e só quem poderia fazer isso eram
eles”. Leminski ficou um tempo pensando em como poderia fazer tal empreitada
e concluiu algumas coisas.
A primeira é que ele era mais concretista que os concretos, pois já
nasceu concretista, começou a escrever já sendo, enquanto os “patriarcas”
do movimento tiveram que chegar até essa forma. A segunda é que
ele era várias outras coisas que os concretistas não eram, sobretudo,
no que toca aos trotskismo e à contracultura. Então, quando Leminski
deixou que essa duas linhas políticas e comportamentais de sua geração
entrassem na sua poesia, fez um poema que superava, que não era mais
poesia concreta, embora nascida nela, como consciência de linguagem e
invenção com a palavra. Perguntei na entrevista ao Décio
no que ele pensava quando disse aquilo para os jovens poetas. Ele queria dizer
que estavam, a academia, as universidades, na época, tentando catalogar,
“matar”, encontrar as leis, as características da poesia
concreta e transformá-la num ismo, o concretismo. Na sua visão,
nem ele nem os outros colegas de movimento queriam isso. Nunca fizeram um concretismo
e sim a poesia concreta. E acrescentou: e o que é a poesia concreta?
É uma pergunta: o que é a poesia?
E é essa pergunta que devemos fazer a cada vez que escrevermos um poema.
E a cada vez devemos dar uma resposta diferente. Há um vício escolar
de querer encontrar nos autores e nas escolas literárias leis. Mas se
olharmos os grandes poetas da primeira fase do modernismo brasileiro, todos
são muito diferentes. A poesia de Oswald não se parece com a do
Mário de Andrade, que por sua vez não se parece com a de Manuel
Bandeira e, seguindo, não se parece com a de Drummond, que não
se parece com a de Vinícius, que é diferente da de Cecília
Meireles, que difere da de Quintana. Creio que sejam esses os principais disso
que se convencionou chamar de modernismo. O que os une? A liberdade de criar
a sua própria poesia.
Não é outro o sentido do verso final da Poética do Manuel
Bandeira: “não quero mais saber do lirismo que não é
libertação”. João Cabral escreve num dos ensaios
do seu livro Prosa sobre o momento especial que viveram esses poetas, principalmente
os da década de trinta, pois puderam fazer dos seus critérios
pessoais a sua estética. Mas isso não é apenas um privilégio
de um momento. É a condição para que uma poesia se estabeleça
entre tantas. Camões escreveu sonetos, uma forma fixa muito praticada
também na sua época. Mas o soneto dele tem marcas próprias,
que ultrapassam a forma e mesmo transformam a forma. A inteligência, a
visão de mundo, o engenho e a arte que eram só dele fazem de algo
aparentemente igual, diferente. Se pensarmos que a maior conquista da Semana
de 22 é a liberdade de criar, não está nem nunca estará
esgotada. Outro ponto: os poetas modernistas morreram ontem. Até poucos
anos estavam entre nós, produzindo, lançando livros contemporâneos.
Não se pode pensar em modernismo como algo que começa em vinte
e termina na década de cinqüenta.
Pouco se tem falado sobre a poesia de Ferreira Gullar. Estou relendo tudo o
que ele escreveu. O Poema Sujo é algo extremamente pessoal e intransferível.
Longo, sensível, político, filosófico, apaixonado, memorialista,
criativo, com vários ritmos, imagens. Não tem muito parentesco
com o que se fez antes na nossa poesia. E depois, nos livros mais recentes,
pérolas desse poema-pensameto, de verso magro que o Gullar realiza como
só ele mesmo. A virada de Chacal, relançada numa linda edição
da CosacNaify, no Belvedere. Ali, tudo muda. Mas mudou, porque Chacal teve a
coragem de ser ele mesmo. Isso é 22? Não. Isso é a arte.
Quem não encarar a si mesmo não faz nada que acrescente. E encarar
a si mesmo é botar na balança o que aprendeu com quem veio antes,
mas colocar na roda também o que aprendeu consigo mesmo.
Podemos ver no século vinte e começo deste século dois
movimentos que chamo de desliteralização e de literalização
do poema. A desliteralização é a aproximação
com a fala, distanciando da linguagem tida como literária: termos coloquiais,
gírias, ritmos mais centrados no espaço, na quebra, do que na
métrica, temas cotidianos, brasilidade, urbanidade, ruptura com cânones,
invenção. A literalização é o contrário:
uso de termos mais raros, diálogo com formas fixas, clássicas,
temas elevados, filosóficos, sombrios, reverência à tradição.
Esses dois movimentos existem e existiram simultaneamente em todas as décadas,
inclusive como fases de um mesmo autor. Em determinados períodos, um
se sobrepõe ao outro, aparentemente ganha a briga, mas se esgota na luta,
enquanto o outro se recupera. Isso porque a arte tem que seguir a estranhar.
O que era novo fica conhecido, vira truque, então um novo novo, que pode
ser até o velho, já se ergue.
Na seqüência, os mesmos elementos reordenados, dispostos de outra
forma, renascem. E tem as gerações que se sucedem. Cada uma tenta
encontrar uma nova linguagem para a sua nova visão de mundo. Não
é de grande utilidade querer dar por encerrado nada em arte. Querer formar
consensos, grupelhos, leis, só serve para a auto-afirmação
temporária, mas a obra, meus amigos, como disse o Gullar, é que
vai sobreviver ou não a nós todos. Sobreviver à politicagem,
aos amigos dos editores, aos jornalistas e suas turmas, aos cupinchas, aos equivocados
e aos lúcidos.
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