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Reflexão

A feliz ignorância
Ricardo Silvestrin

Vivemos a época da pesquisa de opinião. Na política, os institutos medem a aprovação ou reprovação dos governos, a popularidade, as tendências eleitorais. No marketing, pesquisam o que os consumidores querem. Nas transmissões dos jogos, nos programas esportivos, sempre tem uma pergunta para saber o que as pessoas acham. Tudo isso parte de um pressuposto que coloca uma certa autonomia da opinião pessoal. É uma visão que parece supor que todos já saibam de antemão tudo. Que todos têm em si os elementos para avaliar e dizer o que acham. Sem a mínima humildade. Pouca gente reconhece a sua ignorância diante de alguma coisa. Afinal, se perguntaram para mim, pensam, estão supondo que eu saiba ou tenha algo importante a dizer.

Vou falar então. Não vou dar o vexame de dizer: meu, pergunta pra quem sabe mais do que eu, pra quem é especialista, estudioso, sei lá. Na contramão desse narcisismo coletivo contemporâneo, é sempre bom ler e reler pessoas que sabem muito mais do que a gente. Em vez de falar, ouvir quem merece ser escutado. Pessoas que desfazem o que pensávamos, que mostram que estávamos errados na nossa avaliação, que nos revelam mais do que enxergávamos.

Essa agradável e feliz sensação de ignorância, eu estou tendo ao ler Coisas e anjos de Rilke, livro do poeta, tradutor e ensaísta Augusto de Campos. Todo brasileiro deveria uma vez por dia agradecer aos céus por existir entre nós Augusto. Ele vem durante cinqüenta anos ensinando a ler autores da maior importância. Traduz poesia, coisa que poucos conseguem fazer bem. Mostra a criatividade da linguagem de poetas das mais diversas línguas e ainda “transcria”, como ele chama a recriação dos poemas estrangeiros na nossa língua. Como se não bastasse, pinça, aponta, acrescenta a todo momento algum viés novo de observação. Foi assim também no livro sobre Rilke. Sempre tive uma certa barreira para ler esse grande poeta da língua alemã. O tom mais metafísico e até místico que acabou chegando como sendo todo o Rilke não me atraía muito. Mas Augusto vai buscar uma série de poemas que chamou de “poemas-coisa” do autor. Neles, há uma objetividade, um eu que se ausenta para falar do que está do lado de fora, que me trouxeram um poeta novo no velho Rilke. Como esse terrível e belo O Rei Leproso:

“A lepra se instalou em sua fronte,/sob a coroa, e toldou o horizonte,/e ele, como que o rei de todo o horror/que atingiu os demais. Estes, sem cor/contemplam fixamente o dom sombrio./O rei, como num espartilho, esguio,/espera que alguém o trespasse,/mas ninguém o faria;/como se mais ileso ele ficasse/com o acréscimo da honraria”.

E mais tantas outras poesias que eu teria perdido se achasse que já sabia o que era Rilke. Se não me dispusesse a conhecer o que Augusto de Campos viu em Rilke que eu até então não tinha visto.


08/09/2008

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  Ricardo Silvestrin

Ricardo Silvestrin nasceu em Porto Alegre, 1963. Formado em Letras pela UFRGS, é poeta, com diversos livros publicados, e músico integrante dos poETs.

ricardo.silvestrin@globo.com
www.ricardosilvestrin.com.br


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