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Música

O tempo da arte
Ricardo Silvestrin

A artista plástica Fayga Ostrower disse numa palestra, há cerca de vinte anos, algo que ficou para sempre na minha cabeça. Falou sobre o tempo de cada artista. O tempo interno. Que não se pode exigir um tempo determinado para a produção. No momento em que tem que vir à tona, ela aparece. Vinte, trinta anos sendo gerada? O que importa o tempo do calendário? Pensei nisso depois de ver o show do Nico Nicolaiewsky no Theatro São Pedro. Um espetáculo sólido como uma rocha. Canções perfeitas, bem cantadas, bem executadas, letras inteligentes. Direção de cena do Zé Pedro Goulart com mão firme. Um excelente time de músicos. Mas, sobretudo, a força do Nico. A mesma presença inquieta de sempre, com o equilíbrio raro entre o corte de uma lâmina afiada e a leveza quase doçura. O distanciamento, descolamento, entre o que é criado e quem cria. Nesse espaço, atuam os grandes artistas. Como Nico mesmo adverte numa das músicas: “se você quer sinceridade/fique longe das canções/pois aqui nada é de verdade/nem o amor nem as paixões/a gente não sabe de nada/a gente só sabe cantar”. Saí de lá feliz da vida com o disco embaixo do braço. Ouvi a semana toda com calma no carro, que é o lugar onde se pode parar um pouco, mesmo em movimento. O cd se chama Onde está o amor?. E o amor está em todas as canções. O amor como procura, encontro, desencontro, desencanto, lembrança, solidão, pergunta. De repente, um verso como uma agulha no coração da gente: “te amei tanto/que não sobrou nada/pra depois”. Esse eu que vamos vestindo em cada canção. O eu palavra, que não tem dono. Ora ficamos melancólicos, ora saudosos, ora alegres. Vivemos todos os eus do amor do início ao fim do cd. Nossas queixas se misturam ao que é cantado. E sofremos o que talvez nem tenhamos sofrido de fato. Mas sabemos, no fundo, que estamos sempre sofrendo por amor. Ninguém é amado na totalidade do seu desejo. Por isso, o sentimento amoroso nas canções em geral beira a música brega. O sentimento mais fundo é simples. Como o arranjo e a letra de Volta Menina, por exemplo, uma das mais legais do disco. É uma das parcerias com o Cláudio Levitan. Novamente o parceiro que dá um toque singular ao trabalho do Nico, como nos tempos do Saracura, banda genial que tinha também o Pezão, o Sílvio Marques e o Chaminé. E tem as que são só do Nico, com textos supimpas: “ser feliz é complicado/bem mais fácil é sofrer/e ficar parado/sem saber o que fazer”. No final do show, na fila de autógrafos, o Nico perguntou para uma adolescente que música ela havia mais gostado. Esperava a resposta sobre uma do cd novo, talvez sondando sobre um possível clipe. A menina citou aquela que dizia “flor que desabrocha no sertão/tem que ser toda como a areia/que vive ao seu redor/constante sol/ou então vai ser mais uma só”. Essa é uma do repertório do Saracura, de vinte e poucos anos atrás. Quando a menina nem tinha nascido. Depois de tanto tempo para fazer um trabalho novo, Nico descobre que o trabalho antigo continua novo.

Publicado originalmente na Zero Hora

07/05/2008

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  Ricardo Silvestrin

Ricardo Silvestrin nasceu em Porto Alegre, 1963. Formado em Letras pela UFRGS, é poeta, com diversos livros publicados, e músico integrante dos poETs.

ricardo.silvestrin@globo.com
www.ricardosilvestrin.com.br


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