Literatura
Afrofuturismo
Kethlyn Machado
O termo Afrofuturismo foi primeiro cunhado pelo escritor e crÃtico cultural estadunidense Mark Dery em seu ensaio "Black to the Future" (1993), onde Dery propõe e teoriza sobre o termo a partir de um questionamento principal: por que tão poucos escritores afro-americanos escrevem ficção cientÃfica? Mesmo o gênero partindo de uma premissa que conversa tanto com a história afro-americana, do outro em uma terra estranha. O ensaio é composto pela argumentação de Dery acerca do questionamento e por entrevistas com artistas afro-americanos, numa tentativa de entender a problemática. Neste contexto, o autor conceitua Afrofuturismo como ficção especulativa que trata e se preocupa com questões afro-americanas num contexto tecnocultural do século XX - a apropriação de tecnologia para um futuro melhor - e traz exemplos culturais, não necessariamente literários, de obras que já demonstravam caracterÃsticas afrofuturistas, mesmo que anacronicamente.
Posteriormente, o termo se expande, virando um movimento cultural e estético que "reimagina o futuro das pessoas negras, explorando temas como tecnologia, ancestralidade e resistência cultural; uma forma de pensar em futuros possÃveis onde as tradições e experiências afrodescendentes são valorizadas e centrais", explica Mario Augusto Pool, autor do livro afrofuturista "Cartas aos originários", publicado pela editora Salto em 2023. O movimento combina elementos de ficção cientÃfica, fantasia e da história da diáspora africana. Alguns pensadores criticam a definição de Dery, pois acreditam que é muito centrada no contexto afro-americano, deixando de lado o que significa ser negro fora dos Estados Unidos, e numa vivência negra permeada pela branquitude. Estas crÃticas culminaram no termo "Futurismo Africano", que se distancia de uma lente ocidental e foca na cultura e na estética nativa do continente africano.
Para um livro ser considerado afrofuturista, é necessário abordar elementos culturais, históricos e experiências afrodescendentes e como essas identidades e heranças interagem com futuros imaginados e tecnologias avançadas. Pool enfatiza que nessas narrativas "as pessoas negras são protagonistas, criadoras e inovadoras em cenários avançados e alternativos", fundamental para o questionamento e a subversão de sua posição, comumente marginalizada. A questão da reimaginação no Afrofuturismo oferece tanto uma chance de recontação do passado negro sobre diferentes perspectivas, mas também proporciona um controle dos destinos e das histórias das pessoas negras, independentes das estruturas tradicionais de poder.
Por mais que essas narrativas abordem questões de resistência e superação, é importante pontuar que o movimento afrofuturista vai além de questões de representação, pois "não se limita a inserir personagens negros em narrativas de ficção cientÃfica ou fantasia", mas pensa "futuros em que pessoas negras não só existem, mas prosperam como protagonistas e criadoras de sua realidade", afirma Pool. Se trata de subtrair os estereótipos, de serem vistos além da opressão e de uma inclusão forçada, pois eles já ocupam lugares no mundo e são intrinsecamente pertencentes, indivÃduos ativos no funcionamento da sociedade, com um poder e um aparato tecnológico que não os oprime, instrumentalizados para um (afro) futuro melhor. Para Pool, o afrofuturismo propõe uma "visão que valoriza a complexidade e a riqueza da experiência negra, ajudando a reformular o imaginário coletivo sobre o que significa ser negro no futuro".
A relação entre negros e tecnologia é transformada no afrofuturismo, uma vez que durante a história as pessoas negras eram utilizadas como cobaias em prol de avanças tecnológicos e cientÃficos, tendo seus corpos violados e machucados, além terem o acesso a bens tecnológicos prejudicado por questões financeiras decorrentes de um escanteamento social pós-opressão. A tecnologia "se torna um meio de libertação, de recuperação da história e de reimaginação de futuros em que a cultura e a identidade negra reafirmam sua ancestralidade pelo uso, pelo domÃnio e pela normalização de um mundo tecnológico disponÃvel e possÃvel", explica Pool, citando "Pantera Negra", do diretor Ryan Coogler, como um exemplo de uso de tecnologias para a construção de um futuro melhor, rompendo com as limitações impostas pelo passado.
Em sua obra afrofuturista "Cartas aos originários", Mario Pool traz uma espécie de reconciliação entre negros e brancos por meio de cartas, o autor afirma que sua conexão com seus antepassados foi o que o impulsou a escrever literatura afrofuturista, queria entender e escrever sobre suas histórias, além da "vontade de preencher uma lacuna de representatividade e explorar um futuro em que a cultura e a identidade negra possa ser valorizada e respeitada". Pool relata que o processo de escrita possibilitou o encontro com personagens e narrativas que refletem suas próprias vivências e heranças culturais, e completa dizendo que escrever afrofuturismo é "uma forma de projetar futuros alternativos e de celebrar as raÃzes culturais de forma inovadora, desenvolvendo o que poderia ser uma história de adversidade em uma história de resistência, criatividade e autossuficiência".
"Kindred: Laços de Sangue" de Octavia Butler, "Quem tem medo da morte" de Nnedi Okorafor e "O último ancestral" de Ale Santos são alguns livros afrofuturistas indicados por Mario Pool. O autor acredita que o movimento afrofuturista e sua literatura tem o poder de "modificar o imaginário popular sobre as pessoas negras em vários nÃveis, evoluindo a maneira como elas são vistas na cultura, na tecnologia e no futuro"; em questões culturais, identitárias, de protagonismo e empoderamento, além da possibilidade de novas perspectivas para recontar o passado e escrever o futuro, usando a tecnologia como ferramenta de libertação.
17/11/2024
Comentários:
Envie seu comentário
Preencha os campos abaixo.
Artigos
Os artigos pubicados no portal Artistas Gaúchos são de inteira responsabilidade dos articulistas. Se você deseja enviar um artigo, entre em contato com o editor do portal. Não é necessário estar cadastrado no portal para enviar artigos e a veiculação ou não é uma escolha editorial.
Colunas de Artigos:
Selecione
Afrofuturismo (17/11/2024) A importância da representatividade é a importância de se ver incluÃdo (28/06/2024) Dia Mundial do Livro: de Barcelona para o mundo (23/04/2024) O mundo de Harry Potter (16/10/2023) A revelação decisiva para que você escreva mais e melhor (17/03/2023) Escritores como personagens (22/10/2021) Os 120 anos de Walter Spalding (01/10/2021) Clarice Lispector e sua viagem entre a crônica e o miniconto (13/08/2021) Um escritor para se inspirar — Josué Guimarães (22/07/2021) Dia de rock, baby (13/07/2021) “Um nome para o que eu sou importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser”: uma breve biografia de Clarice Lispector (10/07/2021) O escrever (24/08/2020) Somos ou seremos todos stênios (04/08/2020) Prata do tempo, de LetÃcia Wierzchowski (13/03/2020) Pecadora, de Nana Pavoulih (12/03/2020) Cristal Polonês, de LetÃcia Wierzchowski (11/03/2020) Redução de danos na educação (05/05/2019) O hÃfen no divã (06/01/2019) Para-ti, livros e Gabriela (02/01/2019) O livro e sua irrequieta mobilidade (26/12/2018) As universidades, a escrita criativa e a formação de escritores (29/05/2018) “A minha essência é a poesia, sempre vou ser uma pessoa que escreve versos” (19/05/2018) O poder da escrita e o poder da leitura (20/10/2016) Literatura e imprensa: um relacionamento que exige mediação (20/06/2015) Falta editor ou tapa na cara? (18/03/2014)
Os comentários são publicados no portal da forma como foram enviados em respeito
ao usuário, não responsabilizando-se o AG ou o autor pelo teor dos comentários
nem pela sua correção linguística.