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SOBRE YOSSEF, O judeu errado, de José Carlos Rolhano Laitano.
Waldomiro Manfroi

Como observou Sílvio Romero ainda no início do século XX, a Literatura registra as nuances da vida das pessoas, seus costumes, habitações, ambientes, alimentação, vestuário, sentimentos, épocas de felicidade e de sofrimento.  Registra também cenários onde vivem as personagens: ruas, cidades, estados, países, épocas. Então cabe ao escritor, quando quer contar uma história, criar personagens, vesti-los e situá-los no meio e na época em que vivem. 

Na história contada por Laitano, Yossef, o judeu errado, a personagem central é um moço, carpinteiro de profissão, que vive em Nazaré, uma pequena aldeia com trinta casas de construção simples e dois galpões, onde todos os plantadores armazenam os produtos de suas colheitas. Mas se deixássemos o cenário com essa singela descrição, estaríamos omitindo a riqueza dos detalhes bem postos pelo autor como se fora a câmera de um filme.

Vejamos algumas passagens.

 “O plano viário de Nazaré surgiu ao acaso, o filho levantava sua residência ao lado do pai. A aldeia formando meio círculo, meio quadrado e, na ponta, o poço. Isso era tudo. Fora do perímetro das casas estava o espaço livre, no começo do vale, e ali cada um reservou um pedaço de terreno para suas plantações. Como posseiros, porque dono era o rei. A casa de Yossef era a maior de Nazaré: além da sala, contava com a oficina e um pequeno pátio”. 

Por ser um profissional de prestígio, Yossef é solicitado até pelo rei Herodes Antipas para trabalhar em móveis e na reforma do trono do palácio real. Então a personagem central é introduzida pelo autor como sendo o único marceneiro de sua aldeia e que já tem casa e decide adaptá-la para concretizar um sonho: o casamento.  “Começou pelo quarto da parte superior, um luxo. Depois a porta de entrada, que aumentou para que não necessitasse curvar-se para passar, embora a tenha mantido estreita”.

Assim podia tornar realidade essa outra etapa de sua vida. Para avançar nos seus anseios, há que seguir os costumes da sua tribo, solicitar a ajuda do pai, Cleofas, para fazer o pedido ao pai da eleita, seu Ioiaqim.  “Queria Mariah porque não havia muitas meninas disponíveis e nenhuma era bonita como ela. As poucas fêmeas eram disputadas antes que os pais mais pobres vendessem as filhas para honrarem o pagamento de tributos reais e elas findavam escravas de gente rica”...

“No dia do casamento, ele providenciou a ordenha das cabras, alimentou os outros animais e banhou-se no pátio, excepcionalmente pela segunda vez naquela semana. Cleofas, um tanto constrangido, cortou o excesso de cabelo e aparou a barba do filho. Tocar outro homem era quase um pecado. Vestiu roupa limpa, a túnica cor creme com listas coloridas, presente de sua mãe, cobriu a cabeça com o manto vermelho de lã, apertou o cinturão de couro. Enquanto vestia-se, cumpriu outra etapa do ritual e recitou a sua genealogia, como compromisso de sempre lembrar os antepassados: Eli, Natat, Levi, Melqui, Janai, José, Matatias, Amós, Elmad, Isaac, Abrahão, Arfaxad, Noé, Matusalém, Henoc, Jared, Caim, Adão. A lista estava incompleta, mas era o suficiente para preservar a memória da família. A comitiva que o conduziria até Séforis era diminuta: os pais Cleofas e Maria; os irmãos Santiago, Simão e Judas; alguns vizinhos e, para sua enorme surpresa, Bar-Yona, com seu novo cajado”.

Com esta chamada, “para sua enorme surpresa”, o narrador introduz um novo personagem, Bar-Yona que, logo adiante, vai assumiroutro componente da narrativa romanesca: o conflito.  

“Quando o grupo postou-se frente à porta da casa, Yossef saudou as suas testemunhas, levantando os braços: Benditos os que me arrimam nesta hora, feliz o homem que conta com amigos.

Santiago, o irmão irônico, com turbante caído sobre as orelhas, completou, provocando gargalhadas entre os homens: Mais feliz quem possui mulher”.

Então nas páginas iniciais, de forma fiel e muito apropriada, o narrador introduz a personagem central com seus sentimentos e desejos, o ambiente onde vive: suas habitações, suas vestimentas, seus costumes e sua família.  A celebração da cerimônia do casamento é apresentada com tantos detalhes, que o leitor pode imaginar que está vendo cenas de um filme. Por mais fiéis que sejam as cenas e os cenários e as peculiaridades das personagens, faltaria outro elemento indispensável para dar sustentação ao texto literário: oconflito.

Assim que a narrativa avança, conflitos de toda ordem vão surgindo na vida do carpinteiro Yossef e que mantêm o interesse do leitor até o fim para conhecer os desfechos. São os altos dízimos que os colonos devem pagar ao rei, os animais que devem ser entregues aos rabinos como oferendas aos céus. “Nazaré mantinha-se pachorrenta, sem grandes alterações dias após dia, com pouco movimento ao redor do poço, e quem retornava do mercado distribuía lamúrias com o comércio escasso, a falta de dinheiro, o governo arrecadando metade do que as pessoas podiam ganhar, metade do rebanho, metade das plantações, metade dos produtos elaborados, metade da vida, metade de tudo o que possuíam os pobres porque os ricos viviam na bonança”.

E além desses conflitos constantes, havia a luta dos revoltosos zelotas, liderados pelo seu vizinho de porta, Bar-Yona, contra as forças romanas. Todos esses conflitos vão surgindo na vida da personagem central, sem que ele possa tomar partido explícito por um dos lados. Como marceneiro Yossef presta serviços aos rabinos, ao rei e aos romanos. Era daí que obtinha o sustento de sua esposa Mariah e da casa. Mas, assim que o texto avança, esses conflitos de ordem externa vão sendo substituídos pelo conflito pessoal e íntimo que vai dar sustentação ao próprio título do romance.

O conflito interno começa a tomar vulto quando no texto o narrador onisciente descreve a situação peculiar que vive o primo de Yossef. “Ultimamente Yossef não via Zacariah no templo, o primo vivia fechado em casa recebendo viajantes para saber notícias da capital ou como andava o Humor do Sumo Sacerdote. Zacariah comportava-se como um político e além do mais tinha o assunto Isabel, os murmúrios estavam aumentando de intensidade, a gravidez da mulher, o rabino era um velho sem forças, um não-sei-quem mencionou a presença de um anjo, algo como gravidez anunciada. O sacerdote, tido como meio-homem, em tantos anos de casamento não fizera um filho, nem ao menos uma filha, imagine pessoa de sua posição social envelhecer sem descendentes?  E a culpa, ano após ano, era atribuída a Isabel, ela era estéril, garantiam as mulheres, pobre homem, lamentavam as mulheres, Isabel fora abandonada pelos céus, completavam as mulheres,  e agora essa novidade, Isabel velha e grávida, então o abandonado pelos céus era o rabino, riam as mulheres, sentenciando a sua culpa e o seu pecado...”.

Mas eis que, de repente o conflito vivido pelo primo Zacariah se transfere para a vida íntima de Yossef.

Mariah subiu a colina e lá passeou cantarolando e colhendo flores. Tabita, o pastor controlou seus movimentos com vontade de aproximar-se, mas ela estava comprometida, era bem jovenzinha e bem bonita, e ele, de ardor juvenil, sozinho em meio às ovelhas.  Estava imerso nesse devaneio quando algo sucedeu e ele, mais tarde, não logrou confirmar a Yossef se Mariah estava desperta, recostada na grama, ou cochilando, e eis que viu surgir um homem loiro, parece que loiro, que se ajoelhou frente à Mariah e disse-lhe algo e, devagar, pousou os olhos sobre ela. Tabita jurou que ela estremeceu, mas não se moveu do lugar e assim deixou-se ficar, mesmo após a saída do homem loiro, parece que loiro. Tabita receou envolver-se no que não devia, tangeu as ovelhas e desapareceu.

Passado um mês Mariah começou a esconder-se pela casa, queimou a comida em mais de uma oportunidade, esqueceu de ordenhar as cabras, ia ao poço quase ao anoitecer, quando o local estava vazio.

Yossef demorou para perceber a mudança na mulher, a falta de respostas às suas indagações, o que você tem? O que está acontecendo? O desassossego gerou temor e o medo transbordou para a raiva até que, numa noite, agarrou-a pelos cabelos e obrigou-a a sentar na beira da cama e a encará-lo:

Há muito tempo não a vejo no quarto como mulher, não cumpre seus compromissos, erra nos afazeres, passa o dia como lagartixa fugindo para os cantos quando me aproximo, diga o que está acontecendo ou perco a cabeça!

Ela desesperou-se, o puxão nos cabelos doía, sabia que receberia bofetadas, talvez chicotadas, mas sequer compreendia o que estava ocorrendo com seu corpo, a menstruação cessara, como tudo pôde acontecer? Simplesmente não entendia e muito menos imaginava como narrar ao marido o encontro com aquele... anjo e estava grávida!

Grávida? Berrou Yossef, e bateu-lhe com força.

Ela correu para perto dos animais, certa que seria morta:

Ele disse-me que seria vontade do Altíssimo, que estava cumprindo os Seus desígnios.

Grávida? Vontade de quem? Yossef procurou rebenque que usava para vencer a rebeldia do jumento Caim.

Altíssimo, Deus, Yaveh, balbuciou Mariah em meio a copiosas lágrimas, ajoelhada ao chão, ao lado das manjedouras, encurvada, entregue ao castigo físico que deveria sofrer.

Yossef saltou de onde estava, desferiu bofetada ainda mais forte, vociferou:

Desgraçada! Traz o pecado para minha casa e blasfema?

Então, de forma magistral, Laitano usa as primeiras cinquenta e três páginas para introduzir as personagens do romance, caracterizá-las, situar o ambiente, a época em que ocorre a história e os conflitos que devem ser superados. A partir desse contexto, o resto da narrativa trata, de forma mais densa, o conflito interno de Yossef: se mata ou não mata a mulher, conforme era a tradição. Se o leitor quiser saber o porquê do título do romance não encontrará apenas com a leitura das últimas páginas. Além de justificar o título, a partir da página cinquenta e três, a trama e os dilemas das personagens assumem um caráter mais universal, para que Yossef possa tomar sua difícil decisão. E nisso está mais uma riqueza da narrativa. Pelo fato de cada leitor fazer sua própria interpretação sobre texto, algum poderá fazer a seguinte pergunta:

−        Foi isto mesmo que o autor quis dizer?

Porto Alegre, 29/08/2016

Waldomiro Manfroi


31/08/2016

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