Encontrei o orgasmo da literatura. Foi quando comecei a estudar a micronarrativa – ou microcontos. Em busca de uma metáfora para explicar a micronarrativa e compará-la aos demais gêneros, cheguei a conclusão de que a leitura de um livro pode ser comparada ao ato sexual, e o orgasmo seria, aí, o que os doutos antigos chamavam de clímax (também consegui uma comparação com o futebol, em que o clímax seria o gol, mas esta analogia mais pornográfica me pareceu melhor pela universalidade e polêmica). Avante, então.
Já se disse que micronarrativas são narrativas muito pequenas. Alguns citam “Um Apólogo”, de Machado de Assis, como um pioneiro deste gênero, mas a narrativa do mestre ultrapassa 500 palavras, além de estar inserida num contexto sócio-cultural completamente diferente daquele em que surge e se afirma a micronarrativa contemporânea. A raiz do gênero estaria no minimalismo norte-americano, que gerou um Raymond Carver inspirado na concisão de Hemingway e reducionista como só ele. Daí nasceu o termo Flash Fiction, que abarcaria contos curtos de até 1000 palavras. E com a redução cada vez maior do tempo de leitura e do tamanho dos contos, batizaram os norte-americanos de micro-fiction uma ficção produzida com até 300 palavras.
Para entender como é possível uma narrativa tão curta, recorremos ao sexo. O que caracteriza uma relação sexual completa (não importa aqui se boa ou ruim) na cultura ocidental? O orgasmo, sem dúvida. Pode haver relação sem orgasmo, mas não se diria que seja completa. Mas pode haver sexo sem preliminares, até sem beijos, já diria o vampiro de Curitiba, desde que haja orgasmo. Pois bem, o mesmo ocorre com a micronarrativa.
Enquanto o romance é uma relação sexual profunda, calma, em que os parceiros tocam-se com carinho e perícia, beijam-se demoradamente, procuram os sexos com as mãos, um aperta os seios contra o peito, outra arranha as costas com a ponta das unhas, para finalmente haver a penetração e o gozo, a micronarrativa é a parte da penetração e do gozo. A rapidinha.
Provavelmente a sensação de prazer será maior na primeira relação, em que todo o clima criado pelo casal culminará num êxtase profundo. Exatamente a sensação do leitor ao final de um bom romance: inesquecível. Isso não quer dizer que o casal não goste muito, eventualmente, da relação fugaz e ardente de poucos minutos, menos de um minuto. O casal pode, por exemplo, estar há semanas sem se ver, provocando-se mutuamente por telefone, influenciados por um filme lascivo da TV, pensando na modelo do outdoor ou simplesmente com pressa para não perder o avião.
É provável que antigamente, no tempo dos contos de diversas páginas de Machado, o sexo também fosse mais longo. As relações, os passos, os bondes, a vida era mais devagar e por isso o espaço parecia maior. Não por acaso o século XX inventou a machete e o lead nos jornais, o slogan na publicidade, o refrão na música, o avião, a internet. O tempo do mundo acelerou à medida dos automóveis e, em pleno século XXI, parece impensável alguém ficar horas lendo uma única narrativa como O Tempo e o Vento, de Érico Verissimo.
Além da pressa, o fato de as pessoas estarem acostumadas e até extenuadas de narrativas contribui para a possibilidade de um contato mais fugaz com a literatura sem que se perca o prazer deste contato, assim como o erotismo dos tempos modernos acelera relação, penetração e orgasmo de qualquer amante em condições naturais (não vale praticantes de yoga ou consumidores de Viagra).
No Brasil, o primeiro exemplar de “rapidinhas” foi chamado pelo seu autor de ministórias. É de Dalton Trevisan e foi publicado em 1994. Eis uma destas “rapidinhas” não batizadas:
Assustada, a velha pula da cadeira, se debruça na cama:
– João. Fale comigo, João.
Geme lá no fundo, abre o olhinho vazio:
– Bruuuxa... diaaaba...
– Ai, que alívio. Graças a Deus.
Em trinta palavras o narrador apresentou personagens em movimento dentro de determinado espaço, caracterizando o básico de uma narrativa. Ainda que não estejam definidas as personagens nem delimitado o espaço, entende-se tratar de um casal de idosos em sua casa. E isso basta. Provoca o riso no leitor, terminando a relação. É fugaz, provavelmente seja esquecido até se chegar ao final do livro, mas ficará a impressão geral do conjunto de narrativas.
Nos anos seguintes, diversos livros de “rapidinhas”, ou micronarrativas, foram publicados no país e alguns, inclusive, premiados. Entre agosto de 1998 e dezembro de 2001, João Gilberto Noll publica 338 pequenas narrativas na Folha de S. Paulo sob o título de “Relâmpagos”, textos que mais tarde, em 2003, seriam reunidos e publicados pela Francis no livro Mínimos, múltiplos, comuns, Prêmio Academia Brasileira de Letras em 2004. Em 2001, Luiz Rufatto surpreende com Eles eram muitos cavalos, onde conta 70 histórias, por ele chamada de “flashes”, da cidade de São Paulo no dia 9 de maio de 2000, e fatura o Prêmio Machado de Assis da mesma Academia. No mesmo ano Fernando Bonassi publica o ótimo Passaporte, relatos de viagem em forma de micronarrativas que vão muito além de relatos. Mas precisariam de mais alguns anos para que o reducionismo na ficção chegasse ao seu ápice, uma radicalização enriquecedora para a compreensão e estudo da micronarrativa: Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, organizado pelo escritor Marcelino Freire em 2004.
A antologia traz cem contos de até cinqüenta letras de renomados autores brasileiros contemporâneos como Glauco Mattoso, Sérgio Sant’Anna, Márcia Denser, Miguel Sanches Neto e, claro, Fernando Bonassi e Luiz Rufatto. É nessa obra que se entende a essência do conceito de “rapidinha”:
Uma vida inteira pela frente.
O tiro veio por trás.
O texto de Cíntia Moscovich tem dez palavras, sem título nem qualquer outra referência. E a um leitor contemporâneo, acostumado com Rubem Fonseca e a violência urbana, encerra todo um significado. Não há descrição alguma assim como na “rapidinha” não há perfume. As personagens não têm nome, assim como na “rapidinha”. Não há cenário, ou melhor, o cenário pode ser qualquer um. Já apresentação da obra, Ítalo Moriconi afirma: “alguém já disse, poesia é uma frase ou duas e uma paisagem inteira por trás”. E deve ter havido alguém – provavelmente um homem – que tenha dito: “sexo é orgasmo e uma enrolação inteira antes”. Evidente que a analogia sexo/narrativa é mais humorada do que científica. Mas consegue, além de ser descritiva, dar uma pista para o juízo de valor dessa nova estética. Em meio a uma vida sexual repleta de beijos, carícias, abraços e massagens, há de haver momentos de rompante sexual e transas alucinadamente rápidas. Mas não serão a regra, sob o risco de banalizar o orgasmo e tirar dele seu melhor: a intensidade. Assim o é com a micronarrativa: em meio a aparente mesmice dos romances, novelas, contos, filmes a que somos submetidos, cai bem a velocidade alucinadamente rápida da micronarrativa. Mas não pode ser ela a regra sob o risco de banalizar a narrativa e dela tirar seu melhor: a intensidade.
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