Leitura
História da leitura (I): as tábuas da lei e o rolo
Marcelo Spalding
Poucas gerações testemunharam tantas mudanças tecnológicas como a nossa, esta que agora ocupa os bancos universitários, as redações de jornais e revistas, as diretorias das grandes empresas, esta geração que cresceu lendo livros impressos e agora resiste à ideia de novos suportes para a leitura.
Tal aceleração por vezes nos faz esquecer que inovações técnicas, ainda que num ritmo mais lento, ocorrem desde que o homem é homem e foram fundamentais para que um ser frágil como o nosso pudesse sobreviver num ambiente hostil e perigoso como a Terra. Leroi-Gourhan chega a afirmar que, pela liberação da mão e pela exteriorização do corpo humano, "a aparição do homem é a aparição da técnica; é a ferramenta, isto é, a tekhnè , que inventa o homem, e não o homem que inventa a técnica".
Transpondo essa afirmação para a história da leitura, poderÃamos dizer que são as técnicas de reprodução da escrita que inventam o leitor, e não o leitor que inventa tais técnicas, o que significa que os suportes digitais de leitura não são feitos para a geração acostumada com os códices impressos, e sim irá engendrar um novo leitor familiarizado com as novas tecnologias. Tal transformação, ainda que violenta, não é exatamente inédita na longa história da leitura.
Robert Darnton, em A questão dos livros , identifica quatro mudanças fundamentais na tecnologia da informação desde que os humanos aprenderam a falar: a invenção da escrita, a substituição dos rolos de pergaminho pelo códice, a invenção da imprensa com tipos móveis e, finalmente, a comunicação eletrônica.
A invenção da escrita, vale lembrar, é tida pelos historiadores como marco de transição entre a Pré-História e a Idade Antiga, ou Antiguidade, o que revela a absoluta importância da escrita para o desenvolvimento da nossa civilização. Não há consenso entre os historiadores sobre a data ou o local do surgimento da escrita, o mais provável é que sua invenção tenha se dado em vários lugares do mundo de forma independente a partir do momento em que as transações e a administração dos povos se torna mais complexa, além das possibilidades da memória.
Um mito narrado por Platão mostra o quão difÃcil foi essa substituição da memória pela escrita: Thoth, um deus egÃpcio criador da escrita, dos números, do cálculo, da geometria, da astronomia e dos jogos de damas e dados, leva seus inventos a Tamuz, rei de Tebas, esperando que eles possam ser ensinados aos egÃpcios; a escrita, segundo seu inventor, tornaria os homens mais sábios, fortalecendo-lhes a memória. Comenta Thoth: "com a escrita inventei a grande auxiliar para a memória e a sabedoria", a que responde Tamuz:
Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal cousa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequência serão desagradáveis companheitos, tornar-se-ao sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios.
A escrita, naturalmente, com o tempo mostrou-se fundamental não apenas como auxiliar para a memória, mas também para materializar um conteúdo que não pode dispersar-se, como o conhecido Código de Hamurábi, datado do século XVIII a.C.. O Código de Hamurábi é um monumento monolÃtico talhado em rocha de diorito sobre o qual se dispõem 46 colunas de escrita cuneiforme acádica. Seu texto expõe as leis e punições caso não sejam respeitadas, legislando sobre matérias muito variadas. Embora houvesse outros códigos entre os sumérios, que viveram entre 4000 a.C. a 1900 a.C. na Mesopotâmia, o Código de Hamurábi foi o que chegou até os dias atuais de forma mais completa e simboliza bem, num tempo de bits efêmeros, a importância da palavra talhada na solidez de uma rocha milenar.
Pedra com Código de Hamurábi e detalhe do Código
Da mesma época são os Dez Mandamentos entregues a Moisés no Monte Sinai, uma das mais contundentes passagens bÃblicas: "Então disse o SENHOR a Moisés: Sobe a mim ao monte, e fica lá; e dar-te-ei as tábuas de pedra e a lei, e os mandamentos que tenho escrito, para os ensinar".
Apesar da importância desses códigos escritos em rochas sólidas, a escrita não teria se tornado marco zero da história da humanidade não houvesse um suporte capaz de facilitar seu manuseio e transporte, o que tornou a escrita um código com fins muito mais amplos do que, por exemplo, as pinturas ruprestes feitas nas cavernas pelos homens ditos pré-históricos.
O papiro, desenvolvido no Egito por volta de 2500 a.C., é hoje considerado o primeiro suporte para a escrita. Para confeccionar o papiro, era cortado o miolo esbranquiçado e poroso do talo em finas lâminas. Depois de secas, estas lâminas eram mergulhadas em água com vinagre para ali permanecerem por seis dias, com propósito de eliminar o açúcar. Novamente secas, as lâminas eram dispostas em fileiras horizontais e verticais, sobrepostas umas às outras. A seguir as lâminas eram colocadas entre dois pedaços de tecido de algodão, sendo então mantidas prensadas por mais seis dias. Com o peso da prensa, as finas lâminas se misturavam homogeneamente para formar o papel amarelado, pronto para ser usado. O papiro pronto era, então, enrolado a uma vareta de madeira ou marfim para criar o rolo que seria usado na escrita.
Embora a palavra grega biblos signifique hoje tanto rolo quanto livro, a leitura nesse rolo é muito diferente da leitura de um livro como hoje o conhecemos. O rolo é uma longa faixa de papiro - ou, mais tarde, de pergaminho - que o leitor deve segurar com as duas mãos para poder desenrolá-la, fazendo aparecer trechos distribuÃdos em colunas. Não é possÃvel, por exemplo, que um autor escreva ao mesmo tempo que lê.
Exemplo de rolo utilizado na Antiguidade
Os rolos, criados posteriormente à invenção da escrita e, naturalmente, por causa dela, foram fundamentais para o que hoje chamamos de literatura, pois os textos gregos da época de Sócrates, Platão e Aristóteles, Ésquilo, Sófocles e EurÃpedes se tornaram a base da cultura Ocidental e puderam sem preservados em locais especÃficos para este fim, como a lendária Biblioteca de Alexandria.
A Biblioteca de Alexandria, uma das maiores bibliotecas do mundo antigo, foi fundada no inÃcio do século III a.C. por Alexandre, o Grande, que teve como tutor ninguém menos que Aristóteles, e existiu até a Idade Média, quando foi totalmente (ou quase) destruÃda por um incêndio casual. Calcula-se que havia mais de quinhentos mil rolos na Biblioteca de Alexandria, mas como uma obra podia ocupar, sozinha, dez, vinte, até trinta rolos, havia um número de obras muito menos significativo. Segundo Chartier, só o catálogo da biblioteca era constituÃdo de cento e vinte rolos.
À medida que a escrita foi ganhando em importância e valor, outro suporte, que embora mais caro era menos quebradiço e resistia melhor ao tempo, passou a ser muito utilizado nas confecções dos rolos: o pergaminho. O pergaminho é um material feito da pele de um animal (geralmente cabra, carneiro, cordeiro ou ovelha) e especialmente fabricado para se escrever sobre ele. A origem do seu nome é a cidade de Pérgamo, onde havia uma produção vasta e de grande qualidade deste material, e há controvérsia se sua origem remonta mesmo a esta cidade. De qualquer forma, na Biblioteca de Pérgamo, contemporânea a de Alexandria, os rolos em papiro eram copiados em pergaminho, e este material foi fundamental para a preservação dos textos da Antiguidade.
Carrière e Eco, em Não contem com o fim do livro , contam que Régis Debray, filósofo francês, perguntou-se o que teria acontecido se os romanos e gregos tivessem sido vegetarianos: "não terÃamos nenhum dos livros que a Antiguidade nos legou em pergaminho, isto é, numa pele de animal curtida e resistente" (2010, p. 104).
A segunda grande mudança tecnológica, a passagem do rolo para o códice, deu-se logo após o inÃcio da era cristã, durante o Império Romano. Mas este é o assunto da próxima coluna.
17/03/2011
Comentários:
Professor,Marcelo:estou adorando fazer estas leituras.O conhecimento é mesmo sedutor!
Ana Lucia Rodrigues Lopes Santana , Americana 13/08/2017 - 18:43
Estou lendo pela segunda vez, Marcelo. Nada com relação ao entendimento ou ao teu texto. É excelente! Voltei pela necessidade de saborear os milênios da curiosidade e da inventividade do homem, cuja criatividade e o desejo de mudança são insaciáveis. E relatas as transformações com uma didática invejável.
Obrigada!
Scyla Bertoja , Porto Alegre/RS 30/04/2011 - 02:43
muito bom marcelo e Parabéns, e é o que sou, um leitor, gosto muito de ler, estou lendo um ou mais livros, pois creio que à leitura é viva, e que para continuarmos vivos, devemos nos dedicar à leitura sempre. Abraço. Binha...
Jose Carlos de Brito , Brasilia/DF 17/04/2011 - 18:59
Excelente!
Parabéns, Marcelo, pelo trabalho tão minucioso.
Éder Fogaça , Florianópolis 16/04/2011 - 17:54
Muito, muito bom! É o texto e a leitura mudando de suporte para permanecer.Teu trabalho é a prova de que o texto digital está aà e veio pra ficar. Parabéns!
Maria Helena Z. Frantz , Ijuí/RS 15/04/2011 - 18:08
Na corrida que andamos é muito bom pegar um texto assim, bem tratado.
abraço, LÃlia
LÃlia Manfroi , Porto Alegre, RS 15/04/2011 - 15:04
Parabéns, Marcelo, pelos excelentes texto e pesquisa. Para ler e reler. É o que estou fazendo e recomendo fazer. Abraço
Alejandro Massiotti , Porto Alegre/RS 15/04/2011 - 14:34
Adorei!
Muito obrigada.
Rossana Alvim , Porto Alegre/RS 15/04/2011 - 11:30
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Marcelo Spalding
Marcelo Spalding é professor, escritor com 8 livros individuais, editor de mais de 80 livros e jornalista. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras.
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