A imagem do louva-a-deus, na forma como aparece na ilustração do disco do Felipe Azevedo, lembra mais de uma referência. Lembra, p. ex., velado recolhimento. Sugere certa manifestação de oferta. Oferece instigante silhueta de segurança, apesar da fragilidade. Predispõe a pensar sobre o poder e sobre algo parecido com a solidão, que prefiro denominar sozinhez. Por trás da imagem visual, no entanto, o observador é levado a imaginar a cópula do inseto: a fêmea geralmente decepa a cabeça do macho, mas a cópula não se interrompe, apesar disso. Decepar a cabeça que se submete ao prazer instintivo é alegoria que se encontra também magistralmente construída na imagem da Teiniaguá de A salamanca do Jarau, como a concebeu nosso Lopes Neto. Anhangá-pitã instala na lagartixinha, originalmente humana, uma cabeça de luz, pensante, para além da reprodução física, para que usufrua, então, dois poderes fundamentais: o do intelecto e o do amor.
Tudo isso pode ser constatado em reflexão que considere a proposta consubstanciada nos textos que se podem ler e ouvir. Faz bem o artista, portanto, em disponibilizar audição e leitura de textos verbais. O recolhimento, que a leitura propicia, possibilita aprofundamento, embalado pelos acordes da melodia. Isso denota segurança de quem assim se expõe. Nesse sentido, a proposta se coneta com a da poesia pós-modernista brasileira, centrada na concepção que poetiza Melo Neto em Catar feijão: “[...] a pedra dá à frase seu grão mais vivo: / obstrui a leitura fluviante, flutual [...]”. Pedra é obstáculo e simultaneamente é aprofundamento; a pedra muda curso do rio, isto é, altera o discurso. O que se busca é reflexão e profundidade.
Cerebrina na composição e apaixonada no ideal é como se mostra a propositura. O poema e a poesia exigem recolhimento, que se obtém não necessariamente na solidão, mas indispensavelmente na sozinhez. Assim exposto, o texto poético-musical se oferece na integralidade. Propõe subliminarmente, portanto, leitura (no sentido amplo) do universo da vida e da morte. Atinge, por consequência, ultimidades humanas de intensa relevância.
Pensei nisso, tentando dizer o que o conjunto da obra aqui apresentada oferece, sem exclusão de outras trilhas, que, nestas circunstâncias, por razões evidentes, não cabem inteiramente.
Sejam essas palavras aceitas como introdução, ainda que exageradamente longa, ao tema que o poeta do verso verbal e do verso melódico solicitou para este momento. (Lançamento do CD Percussìvé de Felipe Azevedo. 26/10/2007.) Passo agora ao tema solicitado, propriamente dito.
Parecem necessárias investidas conceituais, embora breves, para aprofundar um pouco as observações. (Creio que isso seja cacoete acadêmico, como estoutro, de anotar a fala, para não desvirtuar a sequência das reflexões.) Há noções que percorrem os textos da obra do Felipe: antropofagia-canibalismo modernista; sincretismo; hibridação. A respeito da antropofogia-canibalismo, sobre a faixa 9, fica expressa “uma pergunta [fundamental]: será que a antropofagia oswaldiana já cumpriu o seu papel?” Vou responder que sim: já cumpriu: foi momento em que a revelação do que se considerava então novo (futurista) precisava apagar ou sufocar o passadismo, que soava como submissão. Há uma reflexão muito elucidativa de Donaldo Schüler a esse respeito, em Do homem dicotômico ao homem híbrido: “O diálogo, estabelecendo o outro como outro, nega a antropofagia, deixa o outro ser”. Noutras palavras: a antropofagia tende a calar o outro.
Não é isso que Felipe faz no novo disco; ao contrário: ouvem-se todas as vozes, sem centralismos nem hegemonias. Esse conceito é fundamental na concepção da hibridação, como a vêm propondo os estudos teóricos do pós-modernismo literário.
O sincretismo tende a esconder uma imagem por trás doutra; oculta para manifestar-se; interage por meio da mistura entre o que se mostra e o que se oculta. Não é isso tampouco o que se pode obter na leitura e na audição do disco e na leitura dos textos.
Na minha leitura dos textos verbais e dos melódicos, ouço vozes e tons variados, todos falam de suas culturas, isto é, têm direito à expressão, quer nos gêneros e ritmos musicais, quer na palavra poética; a síntese é de quem ouve e lê. Eis a grande habilidade da arte: iluminar e deixar andar; abrir caminhos e instigar a novos.
Isso não anula, contudo, a criativa reelaboração do mito da Cobra Grande, símbolo caraterístico de antropofagia-canibalismo, a partir do poema de Raul Bopp. O acolhimento dessa proposta estilística, no todo do disco, reforça a idéia de que a mensagem estilístico-ideológica do conjunto da obra é híbrida, porque não cala nem a voz do passado, nem as variedades de leituras sobre ele, nem a prospecção do futuro, ciberneticamente conetado a superchipes de destruição da natureza, isto é, da vida.
Creio que não seja demasiado dizer que, no Modernismo brasileiro, se podem observar, de fato, duas formas do que ficou conhecido como antropofagia-canibalismo. A antropofagia é mais clara em Oswald de Andrade, marcada na frase-símbolo – “Tupi or not tupi [...]”: ou eu ou ninguém. Mário de Andrade tende ao abrandamento dessa tendência. Haja vista a imagem que talvez possa ilustrar a questão: “um tupi tangendo um alaúde” (ou o instrumento árabe da corte europeia medieval na selva do Brasil).
Essa imagem está mais próxima do que Felipe fez no cedê. Entendo que ele deu um passo a mais: o que está construído no disco é o que fundamenta as noções de hibridação. A hibridação é utopia e base teórica da construção dos textos artísticos que o Pós-modernismo nos vem legando.
Em Pele nua do espelho, romance de Patrícia Bins, os personagens não são unos. São duplos e se completam nas várias duplicidades, no tempo e no espaço. Ainda que a duplicidade física seja impossível no espaço concreto-sensorial, os personagens de Pele nua do espelho (con)vivem consigo mesmos e com os demais em angustiante incompletude, que exasperadamente se procura completar (quanto isso seja possível) nas aspirações do que tão-somente podem ser no plano do imaginário. “O imaginário é mais importante que o conhecimento” segundo várias vozes vêm sentenciando.
Em conclusão, é possível reafirmar, pelas leituras feitas: a hibridação permite não apenas a fala múltipla sem centralismos nem hegemonias; acolhe a voz do outro (indivíduo e nação) em vantajosa participação, que constrói o espaço da vida, do pensamento e da paixão. É o que nos oferece o cedê do Felipe Azevedo.
SCHÜLER, D. Do homem dicotômico ao homem híbrido. In BERND, Z.; DE GRANDIS, R. (org.). Porto Alegre: Sagra : DC Luzzatto : Abecan, 1995, p. 11-20.
BOPP. R. Cobra Norato (1931). Cobra Norato e outros poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
ANDRADE, O. Manifesto antropófago. Disponivel em <http://pt.wikipedia.org>. Acesso em 1/8/2010.
ANDRADE, M. de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Ed. crít. [por] Telê P. A. Lopez. Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: SCCT, 1978.
BINS, P. Pele nua do espelho. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1989.
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