Na Moderna Mitologia Terráquea, Tecnologia (filha bastarda e pragmática da Ciência com o bárbaro invasor Consumo) desbancou com raios eletrônicos e instantaneidade deusas milenares como Ética, Moral, Justiça, Tradição, Religiosidade, Solidariedade, com suas virtudes e defeitos... Sem falar na própria progenitora – hoje enlouquecida pela exigência de produzir bases sólidas para enfrentar o fluxo interminável de desafios criados pela Tecnologia. Afinal, estas demandas, obsessão da Tecnologia, trazem novos e maiores problemas, a serem encarados sempre pela velha Ciência.
Na olímpica mansão da família, a Casa Grande – com suas colunas jônicas de cristal líquido e holografia - reside a todo-poderosa Tecnologia. Sua desgastada mãe contenta-se com um chalé modesto, nos fundos da propriedade, onde dorme num catre - quando dorme. Seus raros momentos de lazer – aliás, vigiados por gadjets à laser –, dona Ciência os passa conversando com entidades consideradas menores (são desprezadas como demasiado humanas, com todos seus questionamentos e incertezas), como História, Política, Filosofia, Artes. Eros apenas abana ao passar ao largo, com pressa – pois nunca foi tão exigido como atualmente, sob o tacão de Consumo (o furioso ex-amante de Ciência, viciado em comprar e vender, e aliado estratégico da poderosa filha Tecnologia). Eros, dizem em voz baixa, já não é mais aquele – vive das glórias sensuais do passado e de overdose de comprimidos azuis e publicidade enganosa...
Coroa cínico
Já Consumo não é apenas um joguete a depender cegamente da filha. Tem seus próprios truques e poder. E não raro é ele quem obriga Tecnologia a criar mais demandas e produtos, ainda que esta também esteja exausta e consiga apenas lançar para o Mercado - um deus puramente funcional, hoje vivendo momentos de superexposição - artigos e produtos que em quase nada se diferenciam dos modelos vendidos no ano passado, ou que ainda não se mostram prontos a serem utilizados e curtidos do modo como alardeia a Propaganda. (Esta, outra deusa de escalão menor, sempre de braços com o Mercado – um coroa cínico, por vezes perverso, que se faz passar por garotão sarado e saudável).
À noite, antes de cerrar os olhos de exaustão, Ciência lembra de seus tempos de amplo prestígio e reconhecimento. Até as perseguições obscuras que sofria, reconhece agora, lhe ampliavam a mítica. Rola na cama dura, sentindo-se só e abandonada. Não consegue livrar-se de um pensamento recorrente: Sabedoria, antiquíssima deidade – reconhecidamente um pressuposto para que Ciência pudesse conduzir suas invenções, descobertas e intuições por caminhos de equilíbrio - hoje está retirada a algum pico distante, em meditação e voto de silêncio milenar (e deixa sempre o celular desligado).
O devaneio da velha Ciência, no meio da noite, é interrompido pela comunicação eletrônica imediata: seus amos - Consumo e Tecnologia - exigem que volte a trabalhar imediatamente. Sem perder tempo com lembranças e projeções.
Grande emergência
E a situação revela-se realmente muito grave, uma grande emergência. Os anos e décadas seguidos de destruição, poluição, desmatamento, aquecimento, vazamentos, superexploração da Terra (Pacha Mama, Gaia, e outras denominações locais, filha dileta do Cosmos), agora começam a cobrar providências que a velha Ciência não consegue dar conta – e a Tecnologia muito menos.
As massas de fiéis do Consumo e da Tecnologia, em pânico com a revolta do planeta, voltam-se contra seus ídolos e os arrastam do palácio olímpico. A veneranda Ciência é colocada no trono e imediatamente convoca Sabedoria para uma reunião sem hora para terminar. O Conselho inclui História, Política, Espiritualidade, Filosofia, Artes. Tecnologia é admitida no recinto apenas em função instrumental, sem direito a voto.
Um estrondo no quarto da Ciência e ela desaba do catre, onde sonhava. O próprio Consumo berra e esbraveja ao seu lado:
- Venha trabalhar, velha preguiçosa! Não pense que a Tecnologia vai resolver tudo sozinha! Temos produtos, muitos produtos, para jogar no Mercado! E é para ontem! Vagabunda!
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