Desenho do escritor pelo artista plástico francês Michel Drouillon.
Poeta referido com destaque em todas as obras de análise da poesia do RS, Heitor Saldanha (1910-1986) completaria 100 anos neste 28 de abril. Morava na chamada Furna 111, Rua Sarmento Leite, em Porto Alegre. Conheci-o nos altos do Mercado Público, ao redor do bar-restaurante que ficava na entrada da FRACAB (Federação Rio-Grandense das Associações Comunitárias e Amigos de Bairro), à época em que o bem-humorado Washington Ayres era o presidente, em 1982. Luis Fernando Prestes (não há parentesco) foi quem me o apresentou, sorrindo satisfeito dentre a barba asiática, como a revelar as altas qualidades do outro com um toque de amistoso deboche, bem do seu feitio: “É, ele é poeta...” Ao que Dileta, secretária da entidade e líder comunitária da Associação de Moradores da Vila do Respeito, algo orgulhosa do amigo, completou: “Ele foi viver em Arroio dos Ratos, trabalhou como mineiro...” Recém-chegado de Santa Maria, eu não tinha dimensão de quem poderia ser aquele personagem, mas gostei do aperto forte e digno da sua mão. Era um tipo sobranceiro ante os reveses da vida, óculos de aro preto recortados sobre a cara, e um dos vice-presidentes da entidade.
Sobranceiro é uma palavra que combina bem com ele, de vastas sobrancelhas, rosto vincado pelas galerias do tempo, embora despretensioso e humilde. Cresceu em meio à natureza na região serrana de Cruz Alta, entre os rios Fiúza e Caxambu. Era o mais velho de onze irmãos, numa família que buscava a subsistência na agricultura e no comércio, depois migrada para a cidade. O pai, Otávio Saldanha de Vasconcelos, era repentista, tocava violão e cantava, e escrevia bilhetes que o filho achava “incríveis”. A mãe, Dona Amélia Gonçalves Dias Saldanha de Vasconcelos, era descendente do poeta Gonçalves Dias e fazia lá seus poemas. Heitor não foi enviado para a escola, precisava ajudar o pai, e começou a estudar mais tarde. Em 1939, publicou seu primeiro livro, Casebre, versos iniciais depois renegados.
Telegrafista ferroviário em Porto Alegre, a partir de 1947 integrou-se ao Grupo Quixote, nacionalmente reconhecido e com atuação poética marcante até 1961, junto a Raymundo Faoro, Paulo Hecker Filho, Luís Carlos Maciel, Sílvio Duncan, João-Francisco Ferreira, Vicente Moliterno, Pedro Geraldo Escosteguy, Wílson Chagas, Fernando Castro, Joaquim Azevedo e outros. Em 1951, publica os versos de A outra viagem; em 1953, a novela Terreiro de João sem Lei; em 1954, a premiada novela Apenas o verde silêncio, produção coletiva sob o pseudônimo de Antônio Damião.
POETA DOS MINEIROS
Além da literatura, tinha outro encanto: “Sempre me fascinou a vida dos homens que trabalhavam nas minas de carvão”. No início dos anos 50 decidiu trabalhar numa delas, na região de São Jerônimo. “Todos os dias eu descia ao fundo do poço e via como era a vida de um mineiro. Trabalhei ali uns dois anos e meio e encontrei o tema de As galerias escuras. Foi uma forma de sair em busca da poesia, embora não seja necessário que para se escrever sobre alguma coisa se participe diretamente dela” (Depoimento para o fascículo Autores Gaúchos). “Conheci no fundo de mina a luta dos trabalhadores da mineração. Isso me deu uma mais ampla visão de vida e de sentimento humano, temperando melhor meu instrumento de expressão” (Entrevista a Jorge Adelar Finatto). Mais tarde, os mineiros souberam do livro e dos poemas e deram a Saldanha uma lanterna de mina de presente. Uma pessoa chamada Elen, que absolutamente desconheço, me deu notícias dela em 2008, ao comentar um texto que eu havia publicado no meu blogue: “Conheci Saldanha apenas agora, estou indo morar num apartamento que foi dele. A lanterna que ganhou dos carvoeiros ainda está lá, fiquei encantada com a história”.
Um bom tempo foi necessário para associar aquele poeta da FRACAB, o Saldanha, como o chamavam, ao autor dos versos que agora releio e investigo. Uma antiga lanterna de metal exposta na minha casa, daquelas movidas a carbureto e oriunda da mesma região carbonífera, recobriu-se de novos significados. Se antes lembrava o trabalho quase desumano dos mineiros, as gravuras de Danúbio Gonçalves sobre o tema, o romance Germinal de Émile Zola, o trabalho infantil nas minas britânicas nos versos de O limpador de chaminés de William Blake, a mina de Criciúma que conheci, o início da sociedade industrial e do movimento obreiro, passou a incorporar a contribuição de Heitor Saldanha.
Em A morte do tocador de carro, tema difícil de ser tratado sem perder de vista a continuidade da luta,a incrível onomatopeia do carro a rolar nos trilhos, que se repete ao longo do poema, afasta a eventual melancolia ao reverberar o seu estrondo:
O grito estancou o silêncio.
(...)
Escuta,
escuta que ainda se ouve
vir de longe o carro dele
rolando como um trovão
Esse poema de As galerias escuras (1968), livro escrito em 1954, figurou antes no volume dois (de três) da coleção Violão de rua (1962), organizada pelo poeta Moacyr Félix junto à Civilização Brasileira e vendida aos milhares pelo Centro Popular de Cultura da UNE em estações de trem, centros urbanos e universidades. Saldanha participa ao lado de poetas hoje reconhecidos, como Ferreira Gullar, Joaquim Cardozo, José Carlos Capinam, Afonso Romano de Sant’Anna e outros.
Em Companheiros, a integração entre o poeta-mineiro e seus colegas ganha qualidade e se traduz esteticamente. A palavra “terno”, por exemplo, que designa um dos três turnos de trabalho de uma mina, divididos pelo apito que chama uns e dispensa outros, desdobra-se em “turno”, “interno”, “lanternas” e ecoa seu outro sentido, relativo à terna solidariedade que vai nesse ígneo compromisso:
Quando o apito da mina
entrar o fundo da noite
chamando pro amor ou pro trabalho,
embora faça frio
vão me chamar.
(...)
Quando for a hora de trocar os ternos,
quando o turno fechar seu ciclo interno,
o pão estiver escassso
e as lanternas
tremerem nesses pulsos combatentes,
saibam que estou à escuta
em qualquer parte
e sempre trabalhando entre vocês.
Em qualquer emergência,
em qualquer tempo
podemos compartir nossas tarefas:
trabalhamos às vésperas do fogo.
Por isso meus irmãos vão me chamar.
CLARICE LISPECTOR
Em 1958 foi morar no Rio de Janeiro com a contista gaúcha Laura Ferreira, com quem havia casado um ano antes. “Aí a vida foi intensa”, comentava. Conheceu Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Helena Jobim, José Louzeiro, o paulista João Antônio que se mudara para lá, os irmãos Campos e Décio Pignatari. Houve de tudo um pouco: noites boêmias, debates, agitação, poesia. E o nascimento de seu filho, André, título de um poema escrito anos mais tarde e publicado em A hora evarista (1974):
nos parecemos tanto
eu e meu filho
que brigamos sem saber por quê
e nos amamos sem saber por quê
mas ele é jovem e inteli-gente
espero um dia
nos compreendamos sem saber por quê
Nesse período, o Teatro de Equipe (1958-1962), grupo porto-alegrense composto por artistas que depois teriam projeção nacional, como Paulo José, Paulo César Peréio, Ítala Nandi, Lilian Lemmertz, Nilda Maria e Fernando Peixoto, edita o álbum As minas, com poema de Saldanha e dez gravuras de Waldeni Elias. Em Buenos Aires, uma coletânea de seus poemas é traduzida para o espanhol por Atílio Jorge Castelpoggi e publicada no livro Muestra (1963). No Rio de Janeiro, vem a público Nuvem e subsolo (1968), reunião de A nuvem e a esfera e As galerias escuras, retornando o poeta a Porto Alegre no início de 1970.
Um poema escrito para a grande amiga, originalmente publicado na Folha da Tarde da capital gaúcha, a 7 de janeiro de 1978, serve para exemplificar a necessidade de catalogação da sua poesia esparsa:
Ontem morreu Clarice Lispector
Hoje talvez anoiteça
mais cedo ou
amanheça
maiscedo ou
anoitemanheça.
Hoje não é aqui
nem nunca.
Hoje só não pode ser ontem.
Hoje estou no Treviso
com o Edgar Koetz.
Hoje estou na Volunta
com Zina Loreto.
Hoje estou com o Paulo
na cidade-baixa.
Hoje no 111
estou lendo um romance
de uma bela menina.
Hoje a grande amizade
nasceu de um abraço
na Senhor dos Passos.
Hoje estou com o Grupo
num canto do Huberthus.
Hoje estou com o Mário
no Guaraxaim.
Hoje estou de volta
de onde nunca estive.
Hoje estou sarrafo,
muafo, afo.
Hoje cada instante
tem cara de inseto.
Hoje estou numa serra
entre roças e rios,
hoje sou acidente
e morri de repente.
Hoje cruzei o fundo
das águas extremas,
levaram Vicente.
Hoje sou um instante
vivendo no Leme.
Hoje tenho a cabeça
e os pés numa síntese.
Hoje sou o cavalo
dos meus desajustes.
Hoje sou o estrabismo
que encurva as distâncias.
Hoje estou neste bar
entre gente festiva.
Hoje estou nesta mesa
bebendo sozinho.
Hoje é quando não sei
mais notícias de mim.
Hoje tudo é possível.
Ontem, não.
Ontem, não.
Ontem não é possível.
Ontem não é possível.
Clarice morreu.
QUINTANA E INÉDITOS
Mario Quintana e ele eram bons amigos, ainda que não desprezíveis as diferenças poéticas e pessoais: o primeiro mais lírico, talvez o único exemplo de lírico bem-humorado, embora um tanto alheio e às vezes até carrancudo no diário; o outro mais voltado aos trabalhadores e ofendidos, com atuação política e de modos serenos, portador de um acento trágico.
No último livro, A hora evarista (1974), que dá título à reunião de quatro livros de poesia – além desse, A nuvem e a esfera, As galerias escuras e A outra viagem – reflete sobre a sua função:
Caminhos
(...)
darei vida ao delicado
com meu ímpeto agressivo
esse o meu jeito de amar
(...)
Mais tarde, La hora evarista (1991), tradução dos quatro livros por Héctor Báez, seria publicada em nosso país tendo em vista as nações que fundaram o MERCOSUL, vizinhas do Rio Grande do Sul.
Em 1981, ao poeta e jornalista Jorge Adelar Finatto, Saldanha revelou:“Tenho três livros inéditos, engavetados: Galgonda e outros motivos, poesia; Canção para ninar gigante, poemas humorísticos, e o já mencionado Tribino” (o poeta havia citado um trecho, rememorativo da sua infância na Serra do Caxambu). Há registro, também, da existência da novela Fundo de mina. Onde estão esses livros? Não fosse a oficializada despreocupação com a cultura do estado e o sucateamento do Instituto Estadual do Livro, haveria disposição prévia para a edição dessas obras e as devidas comemorações públicas do centenário.
Sarrafo, muafo, afo!
Maravilhoso!
Não conhecia este poeta!
Grato grande Sid por esta oportunidade de aprender!
Felipe Azevedo Felipe Azevedo, Porto Alegre/RS25/04/2010 - 22:53
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