Um livro mal compreendido. E, por extensão, mal resenhado. Fruto de uma saudável megalomania de um dos grandes escritores contemporâneos – literalmente grande –, A Milésima Segunda Noite já foi merecedor dos mais variados adjetivos e superlativos, esteve enquadrado como grande reportagem, livro de pensamentos, livro de memórias, almanaque, espécie de BÃblia, quando não passa de mais uma obra de micronarrativas no Brasil.
Fausto Wolff pega carona numa estética lançada oficialmente por Dalton Trevisan em 1994 (Ah, é?), e muito explorada na viragem de milênio (Bonassi com Passaporte, Ruffatto com Eles eram muitos cavalos, Noll com MÃnimos, Múltiplos, Comuns, Freire com sua antologia Os Cem Menores Contos do Século). São obras de narrativas mÃnimas – não confundir com minimalistas – de no máximo 300 palavras, enquadrando-se no que os norte-americanos chamam de micro-fiction. Pois é dentro deste formato que Wolff conta a história do mundo em mil e dois capÃtulos (na verdade mil e um), indo do passado paleolÃtico ao futuro 2090, da China ao subúrbio brasileiro, de Adão a FHC, nunca esquecendo seu espaço e tempo reais, o Rio de Janeiro do século XX.
O que Fausto faz de razoavelmente novo (Rufatto usara artifÃcio semelhante para traçar um painel de um dia da cidade de São Paulo em Eles eram muitos cavalos), e faz mais para não cansar o leitor do que para confundir a crÃtica ou parecer revolucionário, é intercalar narrativas (com tempos, personagens, narradores e onisciências diversos) com pensamentos, trechos de livros seus, artigos opinativos, breves e geniais biografias, breves e geniais ensaios, resenhas, verbetes. Mas isso tudo como acessório, pois as narrativas ocupam em torno de 60% dos textos. E é bem possÃvel que num futuro não distante algum editor compile algumas de suas melhores histórias para a edição de bolso e a batize de As Melhores Noites de Fausto. Nela o texto de número 687 estaria em lugar de destaque.
Como eu já disse, morreram vinte e dois prisioneiros de guerra americanos em Hiroshima. O vigésimo terceiro, que sobreviveu, foi linchado pela multidão enfurecida. Os japoneses caminhavam como zumbis procurando seus entes queridos entre as ruÃnas e nuvens de fumaça cancerÃgena. Surpreendentemente, os sobreviventes sentiram pouca dor. Um escritor disse que foi como se o grande terror do desconhecido houvesse cancelado o terror do sofrimento. Nus ou com roupas em frangalhos, não sabiam para onde se dirigir, pois todas as placas haviam desaparecido. Era impossÃvel dizer quem era homem e quem era mulher. Os que saÃram de casa vestindo roupas brancas apresentavam menos ferimentos do que os demais, uma vez que as cores escuras tendem a absorver a luz termonuclear. Amigos não se reconheciam, pois muitos haviam perdido seus rostos. Outros tinham gravada nas faces as impressões de suas mãos ou de seus narizes. Algumas pessoas perdiam as mãos ao acenarem pedindo ajuda. SaÃa fumaça dos ferimentos quando imersos em água. Outros cem mil japoneses morreriam graças aos ferimentos e à radiação. Até hoje crianças nascem cancerosas em Hiroshima e Nagazaki. Os filhos das mulheres grávidas durante o ataque nasceram deformados.
Se o tom é sempre ácido e crÃtico, a temática de A Milésima Segunda Noite é ampla como numa conversa de bar, e o narrador, autêntico homem de bar, complexo como poucas de suas personagens. Trata-se de um tarado pelo prazer, agnóstico mas desconfiado de sua própria descrença, apaixonado não assumido por crianças, em especial pela sobrinha Amanda, e, acima de tudo, de um humanista. Ou existencialista, já que em Fausto a influência de Sartre é visÃvel, mais até que a de Marx e Engels – suas declarações de amor pelos livros lembram As palavras, autobiografia do mestre francês. É natural, portanto, que nesta História do mundo para sobreviventes, subtÃtulo do livro escolhido por Fausto, tenham papel de antagonista a Igreja e seus papas, a Europa e seus Reis, o capitalismo e seus banqueiros, os Estados Unidos e suas filiais, enquanto como protagonista surgem crianças, cavalos, filósofos e mulheres, belas mulheres.
Politicamente incorreto como poucos escritores contemporâneos têm coragem de ser, Fausto questiona a polÃtica de Israel, os movimentos feminista e homossexual, ironiza a grande mÃdia e seu jornalismo subserviente, não poupa palavras para definir Bush, FHC, os banqueiros e polÃticos em geral, prefere o bandido ao banqueiro e põe suas personagens para transar o tempo todo. Sim, em Fausto transam todos, transa Leon Tolstói, transam as rainhas Vitória e Elizabeth, transa Sherlock Holmes, John Keneddy, Catarina, a Grande, Cleópatra (claro) e até Hans Christian Andersen. Como se fosse o amor uma receita para os sobreviventes mudarem a história do mundo.
Talvez este livro, se não tivesse Noll publicado antes, devesse carregar o epÃteto de “um painel minimalista da criação”. Estaria se definindo melhor do que todas as tentativas do próprio livro de o fazer. Porque estamos diante de um mosaico de narrativas, situações, cenários e pensamentos fundamentais para a compreensão da história do mundo, ou pelo menos da história do mundo sob um ponto de vista. Um ponto de vista tido como anacrônico por muitos, romântico por alguns, superado por todos, mas ainda suficiente para resistir mil e duas noites ou mais.
Ainda não conseguem jogar uma bomba sobre as idéias.
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