Inventivo, provocador, ambicioso. Assim pode se definir o mais recente romance de Ricardo Silvestrin, O videogame do Rei (Record, 2009).
Inventivo pelo enredo: a obra inicia por um diálogo entre um Ministro de Guerra e um rei, sorbe uma longa e interminável guerra. Há leve divergência, e quando o Ministro sai, o rei o explode. O explode mas ele volta, reclamando: “se o rei acabar com as vidas daqueles que o protegem, acabará consigo mesmo”.
Ocorre que o videogame em questão é um imenso visor instalado no palácio que permite ao tal Rei ver todo o mundo lá fora e explodir quem quer que seja pela força de seu pensamento. Enquanto a vÃtima ainda tiver vidas, ela retorna.
Num primeiro momento pensamos estar diante de uma ficção cientÃfica e que a história se passe em outro planeta ou outro milênio, mas aos poucos descobrimos que nem sempre o Rei foi Rei:
“A corrupção das classes polÃticas acabou fazendo com que todos nem quisessem mais saber de votar em alguém. A última votação que fizeram foi para rei. E o rei que se encarregasse de fazer no reino a organização polÃtica que quisesse. Teria plenos e ilimitados poderes. O dinheiro que antes ia para pagar os salários e os custos dos polÃticos seria investido em tecnologia. O reino virou um dos mais avançados e preparados para enfrentar tempos de guerra sem fim que se iniciavam. O rei era professor de filosofia antes de ganhar a votação. Não tinha muito dinheiro, pois dava poucas aulas, já que a maioria das escolas não oferecia a disciplina. Sobrava apenas a universidade. Sua mulher era formada em sociologia. Estava fazendo doutorado e interrompeu quando virou rainha. Estudava a história das mulheres na polÃtica. A tese que não defendeu na banca de doutorado expunha a conta-gotas no blog.”
Uma vez eleito e com muita verba para investir em tecnologia, o Rei criou o “videogame”, com o que conseguiu a estabilidade da nação e a supremacia nas guerras com as nações vizinhas.
Assim, ao deixar tempo e espaço indefinidos, mas próximos de nós (pode ser a qualquer tempo e qualquer espaço), o livro se torna extremamente provocador, tocando em feridas um tanto esquecidas pela literatura contemporânea, como polÃtica, desigualdade social, banalização da violência. Tudo isso numa linguagem pós-moderna, nada pretensiosa, concisa e direta.
Mas se a estética é pós-moderna, a temática, não. E daà a ambição do livro: abarcar em pouco mais de cem páginas conflitos de toda uma sociedade, reproduzindo em seu universo particular relações familiares, afetivas, sociais, polÃticas, econômicas. Perguntas das mais cruciais, e diversas, são suscitadas: “onde nos levará tanta tecnologia?”, “como seria, afinal, um mundo governado só pelas mulheres?”, “diante de tanta corrupção, não seria melhor acabar com a polÃtica?”, “como a cultura pode contribuir com a guerra e vice-versa?”, “é justo o povo trabalhar para sustentar seus governantes?”, e por aà vai.
A forma encontrada para a construção desse mosaico é a boa e velha polifonia, com cada capÃtulo narrando a partir de uma personagem distinta, de classe distinta: o rei, a rainha, o Conselho Real e o povo (aqui um homem, uma mulher e um pai, marcando os conflitos de gênero e de gerações). São capÃtulos curtos, alguns funcionando por si, mas todos fundamentais para a construção daquele universo peculiar criado a partir do videogame do rei:
“Uma das mais ardorosas fãs do pensamento da rainha ficou decepcionada ao ler o blog [da rainha] pela manhã. Foi cabisbaixa abrir seu bar, como fazia todos os dias. O chaveiro que agora tinha o novo hábito de tomar o café da manhã no boteco perguntou o que estava deixando a moça tão abatida.
– Você não leu o blog da rainha hoje? (...) Quando penso nas noites em claro que passei lendo o blog dela pra no fim ser tudo mentira...
– Blog é blog. Serve para a gente ler. É que nem livro. O que tem ali não é verdade. Mas é divertido. Não dá pra levar tudo tão a sério. Se fosse verdade mesmo, ninguém escrevia. A verdade verdadeira a pessoa só fala depois de muita pinga. Por falar nisso, ó...”
DifÃcil saber qual será a trajetória desse livro, e confesso estar curioso. Pelo tom despretensioso com que trata temas tão cruciais, pode se tornar um sÃmbolo de uma nova Era, de uma nova relação que a sociedade terá com a literatura (não por acaso eis um livro em que a leitura se dá por blogs, não por livros). Contrário senso, pode ser confundido como mais um livro de fait-divers, com um tÃtulo inventivo para vender um tanto num primeiro momento e depois ser esquecido.
De qualquer forma, é interessante notar que seu autor, Ricardo Silvestrin, desde que chegou a Record tem se mostrado dos mais produtivos e inventivos. Seu volume de contos Play, lançado em 2008, já traz contos construÃdos de forma objetiva, com narradores muito bem escolhidos e marcados pelo que podemos chamar de ousadia temática, misturando motivos do cotidiano com situações fantásticas e conflitos universais. Um crÃtico digital, Paulo Santoro, afirma que Silvestrin “como artista sabe que precisa ser profundo, como homem do século XXI sabe que precisa comunicar rápido”. E, nesse sentido, talvez O videogame do Rei seja sua obra mais contundente.
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