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Reflexão

Pelo fim do complexo de vira-latas
Marcelo Spalding

Em 1958, há meio século, Nelson Rodrigues publicou aquela que se tornou sua mais célebre crônica: “Complexo de Vira-Latas”. O termo, cunhado por ele e até hoje utilizado, significa “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. O que pouca gente sabe é que a crônica se referia ao escrete canarinho que embarcava para a Copa do Mundo de 1958. Dizia Nelson:

“Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios na última batalha ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. (...) E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: - é ainda a frustração de 50 que funciona”.

O final dessa história todo mundo conhece: com Didi, Zagallo, Mazzolla, Garrincha e Pelé o Brasil se consagrou campeão vencendo a Suécia, os donos da casa, por 5 a 2, depois de sair perdendo. Um título inesquecível que abriu caminho para a seleção mais vitoriosa do mundo, hoje com cinco Copas, e projetou aquele que se tornaria o maior jogador de futebol de todos os tempos: Pelé.

Dois de outubro de 2009, meio século depois da célebre crônica de Nelson Rodrigues e do grande título brasileiro. Aconteceu de novo. E Pelé estava lá. E Pelé chorou como criança, como aos 17 anos chorara em Estocolmo, sob os olhos emocionados de autoridades do mundo todo: o Brasil vencia uma disputa mundial e o Rio de Janeiro era escolhido sede dos Jogos Olímpicos de 2016.

No Rio, a euforia foi geral, pois o apoio da população era enorme. Mas aqui e ali começaram a se ouvir muxoxos, críticas, ironias: como um país com tantos problemas de saúde, educação, segurança pode se dar ao luxo de sediar um evento deste porte? Quanto ganharão os políticos e as empreiteiras? O que se poderia fazer com os bilhões que serão investidos até 2016?

Nenhuma dessas perguntas escapa a nenhum brasileiro, nem a Nuzmann, o heroi dessa conquista, nem a Pelé, o emblema do Brasil esportivo, nem a Lula, o fiador desse novo país que se abre ao mundo. E por isso mesmo me parece incrível que mais de 60 autoridades olímpicas dos mais variados continentes, na hora de apertar o botão e escolher entre Madrid e sua riqueza, Madrid e sua estabilidade, Madrid e sua tradição ou o Rio de Janeiro e seus problemas, o Rio e sua incerteza, o Rio e sua inexperiência tenham escolhido o Rio. Foi o mundo quem escolheu o Rio, foi o mundo quem apostou no Brasil de uma forma que poucos brasileiros teriam apostado. Porque nós ainda temos complexo de vira-latas.

“Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia.”

Quantos brasileiros, podendo escolher entre Chicago, Tóquio, Madrid e Rio de Janeiro escolheriam o Rio de Janeiro? Digamos que ganhasse um concurso e pudesse escolher uma dessas cidades para passar uma semana, quantos escolheriam o Rio, mesmo não conhecendo a cidade maravilhosa? Quantos brasileiros não passam as férias nos mais distantes litorais do mundo, gastando fortunas, e não conhecem o Rio? Será apenas Por medo? Não, é pelo complexo de vira-latas.

Algumas gerações cresceram ouvindo falar que o Brasil era o país do futuro, enfrentaram a ditadura e sua violência, sua corrupção, depois acreditaram num novo país, na reconstrução, e deram de cara com um Collor, com a inflação galopante sem fim, o confisco. E dessa forma transmitiram, não sem razão, o complexo de vira-latas aos seus filhos. Voltemos a Nelson: “Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão”. Voltemos aos dias de hoje: gostaríamos de acreditar no Brasil, mas o que nos trava é o pânico de uma nova e irremediável desilusão.

Só que assim como em 58 o Brasil levou o título, e de virada, e fora de casa, e contra os mandantes, é chegada a hora de nossa geração esquecer esse complexo de vira-latas e fazer esse país dar certo, aproveitar essa onda de oportunidades e transformar o Brasil numa nação que simbolize diversidade, vigor, desenvolvimento, esporte, cultura. Nada me irrita mais do que um jovem brasileiro formado e pós-graduado tentando emprego de garçom ou pedreiro na Europa ou nos Estados Unidos. Que complexo de vira-latas!

Sim, nós temos e teremos problemas na saúde, na educação, na segurança. Esses bilhões talvez ajudassem a minimizar esses problemas agora, construindo prisões ou hospitais. Mas há anos e anos, há séculos tem se construído escolas, prisões, hospitais, e já era hora de percebermos que isso não é o suficiente. É preciso mais, é preciso uma força maior que impulsione cada cidadão a crescer pessoal e profissionalmente, estudar, empreender, aprender, cuidar dos filhos, pregar a paz, acreditar. Como Pelé, que mudou nosso futebol e pode ter sido decisivo para mudar nosso esporte como um todo. É preciso, afinal, que abandonemos o complexo de vira-latas: problemas todas as nações têm e terão, o que não podemos é nos eximir da tarefa de ajudar a resolvê-los ao invés de torcermos o nariz para um recado tão contundente do mundo para nós, o recado de que eles acreditam no Brasil e em cada brasileiro.

Para terminar, volto a Nelson: “Só imagino uma coisa: - se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício”.

20/10/2009

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Comentários:

Este texto deveria ter sido veiculado nos jornais por todo o país já no início da Copa do Mundo. Escrito em 2009, mencionando Nelson Rodrigues de cinquenta anos atrás, contém uma grande lição, muito clara no texto do jovem, talentoso e coerente Marcelo Spalding. É um belo posicionamento com relação a este ainda tão frágil olhar da maioria dos brasileiros frente a outros povos.
Scyla Bertoja, Porto Alegre/RS 19/06/2010 - 04:01

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  Marcelo Spalding

Marcelo Spalding é professor, escritor com 8 livros individuais, editor de mais de 80 livros e jornalista. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras.

marcelo@marcelospalding.com
www.marcelospalding.com
www.facebook.com/marcelo.spalding


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