Nascida em Ijuí, forjada na profissão de jornalista em Porto
Alegre e consagrada como repórter em São Paulo, onde está
desde 2000 na revista Época, Eliane Brum é uma das mais premiadas
profissionais do jornalismo brasileiro. Ganhou quase tantos prêmios quanto
a idade que tem, 42 anos. Entre os lauréis estão Esso, Vladimir
Herzog, Ayrton Senna e Sociedade Interamericana de Imprensa. Ela veio a Porto
Alegre neste fim de semana lançar o livro-reportagem O olho da rua –
uma repórter em busca da literatura da vida real (Editora Globo). É
o terceiro título de sua autoria, ao lado de Coluna Prestes – o
avesso da lenda (1994, Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê
(2006, Arquipélago Editorial), ambos premiados. Em entrevista a PoaBoa,
diz que "olhar para a rua e escrever sobre ela não é apenas
uma profissão, pra mim, é um jeito de viver".
De onde vem o teu interesse pelas coisas da rua?
Eliane Brum - Desde que me lembro por gente, acho. Sempre lembro de mim arrastada
pela mão de alguém porque estava olhando alguma coisa. Nunca fui
muito de falar. Era uma olhadeira. E simultaneamente a esse voyeurismo infantil
diante do mundo, sentia também a dor do mundo. Achava as pessoas tristes,
a desigualdade me chamava a atenção desde que percebi os primeiros
"esmoleiros", como se chamava em Ijuí quem pedia pão
nas casas. Nunca foi natural isso pra mim, nunca foi imagem dada. Eu me perguntava,
muito cedo, por que as minhas roupas eram melhores que as deles e por que meu
pão não era duro. E por que, afinal, se dá o pior pão
para quem pede. Então, fui uma criança triste. E, quando aprendi
a ler e escrever, descobri um jeito de viver, de elaborar a dor do mundo. Lia
muito e comecei a escrever sobre a minha dor. Assim, literatura como leitora
faminta e poeta infantil tropeçante foram minha estréias num jeito
possíve l de viver. Olhar para a rua e escrever sobre ela não
é apenas uma profissão, pra mim, é um jeito de viver. E,
assim, nesse caminho, descobri também que há dor, e muita, mas
também há alegria e reinvenção. E isso, de certa
forma, faz com que a minha vida seja possível.
Por que achas, supõe-se, que a vida real é mais real nas
ruas do que, digamos, nos salões?
Eliane - A "Rua" do livro é mais abrangente. Envolve os salões,
o interior das casas, os botecos, os quintais, as cozinhas, os quartos de dormir.
É um contraponto, uma reafirmação de que é preciso
ir para a rua, para o mundo, para contar a história cotidiana. E não
ficar dentro da redação, "vendo" o mundo pela internet
ou pelo telefone. E, assim, invertendo a lógica do mundo. Ele continua
fora de nós e, alcançá-lo, é a graça da nossa
profissão. A velha história de sujar os sapatos para fazer reportagem
e de que lugar de repórter é na rua.
Ijuí, Porto Alegre, São Paulo. Como a diferença
das ruas dessas cidades te impactou?
Eliane - Pode parecer estranho, mas elas não são muito diferentes.
Por todas elas anda gente que sonha, que se atrapalha com a vida, que tropeça
nos próprios pés e, mesmo assim, arranja um sentido para suas
vidas. São Paulo, apenas, foi um desafio, no sentido do seu tamanho.
É uma cidade que tem mais ruas do que qualquer outra, mas não
tem o que todas as outras têm: céu, ou melhor, horizonte. Passei
meus primeiros tempos lá tendo um pesadelo recorrente: eu tentava sair
da cidade de todas as maneiras, correndo, escalando, de helicóptero...
e não conseguia. A cidade era intransponível e o horizonte estava
fora de lá. Então, descobri que nunca teria o mapa de São
Paulo dentro de mim, como tinha de Ijuí e de Porto Alegre. Teria de mergulhar
no caos. E foi o que eu fiz (e gostei). Entendi também que o horizonte
tinha de estar dentro de mim, e não fora. E é para lá que
eu olho quando tudo fica muito duro ou difícil.
O que tu mais curtes nas ruas de São Paulo e o que mais deploras?
Eliane - Eu sou fascinada por São Paulo. É uma cidade, às
vezes, muito feia, especialmente nas periferias. Tem concreto demais e quase
não há árvores, é esmagadora. Mas é justamente
desta dureza que emergiu o primeiro movimento literário da periferia
brasileira, que para mim é a coisa mais nova, importante e transformadora
que estamos tendo o privilégio de testemunhar na área cultural,
ainda que a imprensa tradicional a ignore. Então, essa é a maravilha
de São Paulo. As pessoas se reinventam e reinventam a cidade onde aparentemente
só há concreto. Inventam suas próprias árvores para
viver...
O quanto de poder público falta nas ruas do Brasil?
Eliane - Depende das ruas. Na dos ricos não falta quase nada. Nas periferias
e favelas falta tudo. Mas não há como permanecer assim. Uma revolução
silenciosa (e pela caneta) já acontece no Brasil inteiro há algum
tempo. E eu me sinto privilegiada de testemunhá-la.
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