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Eliane Brum: "Escrever sobre a rua é meu jeito de viver"
Carlos Souza

Foto: Lilo Clareto
Foto: Lilo Clareto

Nascida em Ijuí, forjada na profissão de jornalista em Porto Alegre e consagrada como repórter em São Paulo, onde está desde 2000 na revista Época, Eliane Brum é uma das mais premiadas profissionais do jornalismo brasileiro. Ganhou quase tantos prêmios quanto a idade que tem, 42 anos. Entre os lauréis estão Esso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna e Sociedade Interamericana de Imprensa. Ela veio a Porto Alegre neste fim de semana lançar o livro-reportagem O olho da rua – uma repórter em busca da literatura da vida real (Editora Globo). É o terceiro título de sua autoria, ao lado de Coluna Prestes – o avesso da lenda (1994, Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (2006, Arquipélago Editorial), ambos premiados. Em entrevista a PoaBoa, diz que "olhar para a rua e escrever sobre ela não é apenas uma profissão, pra mim, é um jeito de viver".

De onde vem o teu interesse pelas coisas da rua?

Eliane Brum - Desde que me lembro por gente, acho. Sempre lembro de mim arrastada pela mão de alguém porque estava olhando alguma coisa. Nunca fui muito de falar. Era uma olhadeira. E simultaneamente a esse voyeurismo infantil diante do mundo, sentia também a dor do mundo. Achava as pessoas tristes, a desigualdade me chamava a atenção desde que percebi os primeiros "esmoleiros", como se chamava em Ijuí quem pedia pão nas casas. Nunca foi natural isso pra mim, nunca foi imagem dada. Eu me perguntava, muito cedo, por que as minhas roupas eram melhores que as deles e por que meu pão não era duro. E por que, afinal, se dá o pior pão para quem pede. Então, fui uma criança triste. E, quando aprendi a ler e escrever, descobri um jeito de viver, de elaborar a dor do mundo. Lia muito e comecei a escrever sobre a minha dor. Assim, literatura como leitora faminta e poeta infantil tropeçante foram minha estréias num jeito possíve l de viver. Olhar para a rua e escrever sobre ela não é apenas uma profissão, pra mim, é um jeito de viver. E, assim, nesse caminho, descobri também que há dor, e muita, mas também há alegria e reinvenção. E isso, de certa forma, faz com que a minha vida seja possível.

Por que achas, supõe-se, que a vida real é mais real nas ruas do que, digamos, nos salões?

Eliane - A "Rua" do livro é mais abrangente. Envolve os salões, o interior das casas, os botecos, os quintais, as cozinhas, os quartos de dormir. É um contraponto, uma reafirmação de que é preciso ir para a rua, para o mundo, para contar a história cotidiana. E não ficar dentro da redação, "vendo" o mundo pela internet ou pelo telefone. E, assim, invertendo a lógica do mundo. Ele continua fora de nós e, alcançá-lo, é a graça da nossa profissão. A velha história de sujar os sapatos para fazer reportagem e de que lugar de repórter é na rua.

Ijuí, Porto Alegre, São Paulo. Como a diferença das ruas dessas cidades te impactou?

Eliane - Pode parecer estranho, mas elas não são muito diferentes. Por todas elas anda gente que sonha, que se atrapalha com a vida, que tropeça nos próprios pés e, mesmo assim, arranja um sentido para suas vidas. São Paulo, apenas, foi um desafio, no sentido do seu tamanho. É uma cidade que tem mais ruas do que qualquer outra, mas não tem o que todas as outras têm: céu, ou melhor, horizonte. Passei meus primeiros tempos lá tendo um pesadelo recorrente: eu tentava sair da cidade de todas as maneiras, correndo, escalando, de helicóptero... e não conseguia. A cidade era intransponível e o horizonte estava fora de lá. Então, descobri que nunca teria o mapa de São Paulo dentro de mim, como tinha de Ijuí e de Porto Alegre. Teria de mergulhar no caos. E foi o que eu fiz (e gostei). Entendi também que o horizonte tinha de estar dentro de mim, e não fora. E é para lá que eu olho quando tudo fica muito duro ou difícil.

O que tu mais curtes nas ruas de São Paulo e o que mais deploras?

Eliane - Eu sou fascinada por São Paulo. É uma cidade, às vezes, muito feia, especialmente nas periferias. Tem concreto demais e quase não há árvores, é esmagadora. Mas é justamente desta dureza que emergiu o primeiro movimento literário da periferia brasileira, que para mim é a coisa mais nova, importante e transformadora que estamos tendo o privilégio de testemunhar na área cultural, ainda que a imprensa tradicional a ignore. Então, essa é a maravilha de São Paulo. As pessoas se reinventam e reinventam a cidade onde aparentemente só há concreto. Inventam suas próprias árvores para viver...

O quanto de poder público falta nas ruas do Brasil?

Eliane - Depende das ruas. Na dos ricos não falta quase nada. Nas periferias e favelas falta tudo. Mas não há como permanecer assim. Uma revolução silenciosa (e pela caneta) já acontece no Brasil inteiro há algum tempo. E eu me sinto privilegiada de testemunhá-la.


17/12/2008

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