Minha avó morreu no último inverno, e com ela a casa intacta com os objetos e lembranças acumulados em quase um século de vida. Um ano antes morrera meu avô, mas tudo permanecera inviolado como devido, pois lá seguia firme (ou quase) minha avó, agora patroa absoluta do lar - ainda que em seus devaneios. E enquanto ela estivesse viva, em nada se tocaria.
Por fim, era chegada a hora de enfrentar a casa e seus recantos, as portinhas escondidas e gavetas infindáveis. Os pertences de toda uma vida, aquilo que ano após ano juntamos, por afeto, capricho ou desleixo, deixando às gerações mais novas a tarefa inglória de lidar com o volume monstruoso. Em meio a achados comoventes que embargam a garganta e embaçam a vista (cartas, desenhos, fotos), outros achados pitorescos que divertem (Era a cara dele guardar uma coisa dessas!) e exasperam (Todas as edições da revista desde 1980?). E dê-lhe fitas-cassete de tangos e boleros da vó pululando das gavetas, os esmaltes e cosméticos vencidos há mais de década, os cadernos de receitas, os baralhos de carta, os vestidos de crochê das bonecas das netas. No gabinete do vô, a pasta organizada com os documentos de resgate da história da família, a coleção de moedas antigas em potes de vidro, as centenas de recortes de notícias variadas, a bizarra coleção dos mais horríveis poemas já publicados em jornal, com os quais, sádico, se divertia.
A casa era também repleta de livros, distribuídos por vários cômodos. Os livros da vó, literatura. Os livros do vô, tratados de história natural, teses sobre a origem do universo, volumes de física, muitas obras de filosofia da ciência, ensaios de história, filosofia, sociologia, psicologia, dicionários de todos os tipos. Um mundo que em grande parte acabei por herdar. A vontade era de acolher todos os livros, mas seria fisicamente impraticável. Me vi forçada a fazer um filtro, o que de qualquer modo não evitou que eu chegasse em casa com várias centenas de volumes.
O pequeno apartamento em que moro, onde os livros já se sobrepunham em desordem na biblioteca e pensávamos como fazer para ampliar o espaço e dar conta de ajeitá-los, foi subitamente inundado por caixas e mais caixas da nova herança de papel. E assim, dediquei aqueles dias a uma redescoberta afetiva dos títulos, enquanto removia o pó de cada um com cuidado, e carimbava as primeiras páginas para identificar a proveniência dos livros antes de misturá-los aos nossos. Os livros, enfim, estavam limpos, carimbados e organizados em pilhas pela sala. Faltava o espaço. Os meses passaram, os livros no chão e o pó de novo a pleno. Até que recebemos um complemento de herança, algumas estantes de madeira que estavam dando sopa, e finalmente tudo foi acomodado.
Foram naqueles dias de caos reinante, enquanto tentava organizar os livros por assunto entremeando o trabalho de boas interrupções para folhear páginas e ler orelhas e índices, que eu percebi que não poderia ter recebido melhor herança. Não apenas pelo meu amor aos livros em geral, mas porque dificilmente alguma outra coisa falaria mais sobre meus avós do que aqueles livros. Ao abrir um volume e descobrir as glosas do vô nas margens, os sublinhados, pontos de exclamação, discordâncias, as páginas especiais com a ponta dobrada, era como se o vô se materializasse de novo à minha frente, conversando conosco, discorrendo com paixão sobre seus autores preferidos e sobre os livros que balizavam sua compreensão do mundo. Ao separar as ficções da vó em literatura francesa, anglo-saxã, latino-americana, emergia nitidamente a sua figura amiga e silenciosa lendo na poltrona, fechando o livro quando os netos chegavam, mas com ele eternamente ao seu lado. A vó não tinha a eloquência do vô, era de conversa tímida, raramente falava sobre as histórias que estava lendo. Mas sua leitura voraz e permanente me contagiou para sempre.
Se os objetos que possuímos podem dizer muito sobre nós, sobre nossos gostos e estilo de vida, os livros tanto mais revelam, indicando uma particular visão de mundo, um modo de ser, de pensar e de viver. E os livros como herança são um presente valioso, a memória viva e pulsante daqueles que os possuíram. São a possibilidade de estender ou recriar o diálogo sobre ideias, histórias, conhecimentos e valores com as pessoas que amamos, nos dando a sensação de passar a perna na implacável finitude.
06/09/2012
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Comentários:
ROMANELLI FALECEU EM S PAULO, HÁ 02 ANOS ALVES, RIO08/06/2018 - 07:38
romanelli faleceu em SP EM 2016. alves, s paulo20/05/2018 - 07:46
AMOR PAGÃO
Amor feito de chamas
Que incendeia nossas almas
Com o fogo das desilusões.
Amor selvagem,
Que nos fere sem machucar.
Amor inocente,
Que nos cega com decepções.
Amor pagão,
Sem compromisso de espera
Sem trégua ou religião.
Agamenon Troyan CARLOS ROBERTO DE SOUZA, MACHADO-MG /BRASIL17/09/2012 - 13:27
Espero que seus avos tenham deixado alguma coisa que te agradasse. Jairton Jose Jurinich, Recife-Pe15/09/2012 - 22:18
Letícia, seu texto me levou e elevou à condição de herdeiro de bons livros. Ótimo conhecê-la, ótimo lê-la.
Bruno
http://rumoresdaventania.blogspot.com Bruno Brum Paiva, Porto Alegre/RS15/09/2012 - 20:30
Muito bom o seu texto. Como artista plástica que insiste em usar a pena, adoro crônicas, romances e histórias de gente. Parabéns e um abraço.
Tenini Teresinha M. Canini Avila, Porto Alegre15/09/2012 - 10:07
Letícia, gostei muito de teu texto. Parabéns. Já antecipo a satisfação que terei em te ouvir no painel Meu primeiro Livro da AEILIJ. Nos veremos lá. Abraços. Jacira Fagundes - Coordenadora da AEILIJ/RS Jacira Fagundes, Porto Alegre/ RS13/09/2012 - 15:25
A literatura nos irmana sempre, torna universal a orfandade humana...queira Deus que sempre sejamos desvelo de tantos descartes, juntando aparente misérias. Parabéns!
Sinto um texto que iniciou muito bem, porém foi perdendo a literatura ideal nos fianalmente! Vale como emoção!A coragem de lutar com a palavra... Aí reside a magia! Ivete Todeschini, Bento Gonalves - RS13/09/2012 - 15:16
QUERIDA LETICIA PARABENS PELOS SEUS ESCRITOS. ACOMPANHO SUA TRAJETÓRIA COMO ESCRITORA E A CONSIDERO UMA NOVA ESTRELA PRESENTE NESTE AR TÃO PULUIDO POR QUEM ESCREVE SEM TALENTO E NEM CONHECIMENTO MINIMO DA LINGUA. AMBOS ESTUDAMOS NA ITALIA VOCÊ EM LECCE E EU EM ROMA. BEIJOS DO ROBERTO ROBERTO ROMANELLI MAIA, RIO DE JANEIRO/RJ13/09/2012 - 13:59
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Letícia Möller
LETÍCIA MÖLLER nasceu em Porto Alegre, em 1979. É escritora, advogada e professora universitária, com Doutorado em Sistemas Jurídicos e Político-Sociais Comparados pela Università del Salento, em Lecce/Itália, e Mestrado em Direito pela Unisinos. Autora dos livros infantis Eu e você, aqui e lá! (WS, 2010), Corre, Pedro, corre! (WS, 2011), Fidalgo, Finório e Firula (Libretos, 2013) e Os peixes, o vovô e o tempo (Libretos, 2015).
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