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Resenha

A virtude do egoísmo em Ayn Rand
Marta Leiria

Parece no mínimo constrangedor (maldade?) reconhecer o egoísmo como virtude. Em meu livro solo, A inveja nossa de cada dia e outras reflexões crônicas (2019), abordei o pecado envergonhado sob a ótica da narrativa bíblica. Lembrando: por que Caim matou Abel? Por não suportar que o irmão o superasse em qualidades. Por puro ressentimento: a desgraçada inveja, que de santa não tem nada. É falsa a célebre frase de que ninguém é melhor do que ninguém. Para a escritora russo-americana Ayn Rand (1905/1982), ateia convicta, alguns poucos são melhores e carregam o mundo nas costas, enquanto os outros apenas se aproveitam.

Resolvi ler Rand por ela mesma, não sobre o que outros dizem de suas radicais posições. Ler uma frase ou outra da pensadora é inútil para compreender e, principalmente aplicar, sua filosofia Objetivista. Para com ela concordar ou discordar é preciso fazer algo raro hoje em dia: ler o texto completo, contextualizar frases, reler e fazer anotações. Ah, e dá para concordar apenas em parte, antes de jogar o livro longe diante de algumas posições que parecem ferir nossa suscetibilidade, tal a rigidez de princípios éticos e morais que fundamentam suas ideias. Para ela, a autoindulgência não tem vez. Vale demais a leitura (para quem gosta de pensar), afinal é impossível sair incólume das provocações de Rand. Noutras palavras, é caminho sem volta, como adverte Dennys Garcia Xavier, ao nos apresentar a recém-lançada edição brasileira de A virtude do egoísmo (LMV Editora, 2022).

Eis algumas das acepções dicionarizadas de egoísmo: amor excessivo ao bem próprio, sem consideração aos interesses alheios; orgulho, presunção. Narcisismo. Na Mitologia, Narciso era tão belo e tão vaidoso que, após desprezar inúmeras pretendentes, acabou se apaixonando pelo próprio reflexo. Morreu de fome e sede à beira da fonte de água onde via sua imagem refletida. A conotação negativa é clara. Não para Rand. Erra quem supõe que ela apregoa um amor-próprio que implique o direito de pisotear, passar por cima dos outros. Ou amar tanto a si próprio a ponto de não admirar mais ninguém e renunciar ao encontro amoroso (ela enaltece o amor romântico). A ética objetivista defende que o bem humano não requer sacrifícios humanos. É contrária a ver o homem como animal de sacrifício. Algum incauto pode dizer: é válido sacrificar a própria vida para salvar um filho que está se afogando. Para Rand, aí não há sacrifício. Deixar de envidar todos os esforços para salvar o filho significaria um sacrifício insuportável para carregar nas costas. A vida se esvaziaria de sentido. E o que dizer do filho que "quer" renunciar à carreira e cede à imposição do pai por aceitar a ética do altruísmo? O filho acredita que é imoral agir a favor de seu próprio interesse, esse é o princípio que dirige suas ações. Age movido pela culpa: "tem" de agradar ao pai para sobreviver. Há quem diga que todos são egoístas, com uma expressão de cinismo e desprezo, o que a pensadora refuta: "Dizer que ‘todos são egoístas’ é fazer à humanidade um elogio que ela não merece."

Refletir sobre as lições de Rand, e tentar aplicá-las à vida terrena (haverá outras?), me parece fundamental. Quanto mais jovens, mais acreditamos que é possível salvar a humanidade. O problema é que sonhar e apregoar a maravilha idealizada de mundo não transformará a realidade, por mais preocupados e bem-intencionados que estejam os que pretendem salvar as minorias que sofrem. Se a menor minoria que existe é o indivíduo, parece evidente que, antes de tudo, é preciso salvar a si mesmo. Para isso, é preciso fazer algo em seu próprio interesse, colocar-se em primeiríssimo lugar. E fazer algo de que possa se orgulhar: ser útil e colher o fruto do esforço pessoal, negociando livremente com os outros sem que nenhum seja subjugado. Sem orgulho, amor-próprio, autoestima, como queiram, como se salvar? Há quem jure amar a humanidade, mas despreza a si mesmo por não realizar nada de valoroso aos próprios olhos, ressentindo-se com o êxito alheio (sim, ela, a inveja). E, o pior, não raro vivendo às custas do esforçado. Se faz algum sentido a reflexão que aqui proponho, estudar e compreender a ética objetivista pode ser um bom começo. Mas é importante ir direto na fonte, conhecer Ayn Rand por ela mesma, não só pelas inferências que fiz a partir de uma de suas obras.


05/11/2022

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  Marta Leiria

Marta Leiria é escritora e Procuradora de Justiça aposentada. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS (1985). Ingressou na carreira do Ministério Público do RS no ano de 1988, aposentando-se em março 2019. Iniciou-se em 2012 na arte da crônica e do conto, participando de oficinas de escrita criativa e publicando artigos em Zero Hora e outros jornais. Lançou seu primeiro livro individual de crônicas e contos na 65ª Feira do Livro de Porto Alegre: A inveja nossa de cada dia e outras reflexões crônicas, Ed. Metamorfose, 2019. A obra foi finalista do Prêmio Minuano de Literatura 2020 na categoria Crônica e do Prêmio Apolinário Porto Alegre 2020, da Academia Rio-Grandense de Letras.

martalealpach@gmail.com


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