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Resenha

Como Criar um Monstro
Silvia Generali da Costa

Operários da Violência está completando quatorze anos em 2020. Não é, portanto, uma novidade. Volto a ele hoje na tentativa de explicar racionalmente o que é humanamente incompreensível. Tenho me lembrado deste livro cada vez que leio notícias nos jornais sobre a morte de um adolescente negro brasileiro abatido por forças policiais e sobre a violência das abordagens militares nas chamadas comunidades, com destaque para o estado do Rio de Janeiro.

A pergunta que persiste é: como estes homens matam, torturam, espancam e humilham outros cidadãos e depois vão para suas casas como se tivesse sido apenas mais um dia de trabalho?

Não foram poucos a buscar uma resposta plausível. Hannah Arendt ganhou destaque neste campo com sua obra Eichmann em Jerusalém, resultado de cobertura jornalística do julgamento de ex-oficiais nazistas em 1961, na qual apresenta o conceito de Banalidade do Mal. Arendt percebe que Eichmann, um elemento central na execução dos judeus nos campos de concentração durante o domínio nazista na Segunda Guerra, não se apresenta como um psicopata demoníaco, mas como um cumpridor de ordens, um burocrata na hierarquia militar. Arendt formula a tese de que neste tipo de atrocidade há uma suspensão do pensar, do sentir, do ser crítico, do ser moral. A identidade se descola da realidade para reconstruir-se a partir de valores grupais impostos por uma lógica fascista intencionalmente construída.

Os autores de Operários da Violência, por sua vez, partem de realidades norte-americanas, gregas e brasileiras.

O psicólogo social Philip Zimbardo se tornou mundialmente famoso através do Stanford Prison Experiment, no início da década de 1970, no qual universitários participaram voluntariamente de uma simulação da vida em um presídio. Os estudantes foram divididos entre carcereiros e prisioneiros e colocados em situações muito próximas à realidade. O experimento teve de ser interrompido em menos de uma semana porque “os carcereiros tornaram-se autoritários e alguns até ‘sádicos’, enquanto os prisioneiros se tornavam passivos e totalmente submissos” (p.472).

A socióloga Martha Huggins fez sua carreira acadêmica nos Estados Unidos. Publicou diversas pesquisas sobre violência policial, esquadrões da morte, tortura e meninos de rua. Entre outros títulos, foi presidente da Divisão sobre Crime e Comportamentos Desviantes da International Sociological Association.

Mika Haritos-Fatouros é professora emérita de Psicologia na universidade grega de Aristotle de Thessaloniki. É presidente honorário do Centro de Reabilitação de Vítimas da Tortura e de Outros Tipos de Tratamento Desumano, na Grécia. Publicou pesquisas sobre refugiados, tortura, violência contra mulheres e crianças de rua, incluindo a obra The Psychological Origins of Institutionalized Torture.

Os três pesquisadores desenvolveram um estudo qualitativo, de metodologia científica exemplar, entrevistando 23 policiais que “apresentavam evidências sólidas de haverem sido torturadores ou assassinos” (p.93).

As conclusões do estudo ratificam pesquisas anteriores no sentido de que não se pode explicar a violência policial, o assassinato respaldado pelo Estado ou a tortura com a análise individual de sujeitos psicopatas. Os operários da violência são sujeitos aparentemente normais, assim como o foi Eichmann. O que os diferencia dos policiais não-torturadores pode ser um conjunto de condições criteriosamente construído para arregimentar trabalhadores para um projeto de Estado. “Nosso trabalho e o de colegas tornam claro que qualquer um pode tornar-se torturador ou executor sob um conjunto de condições bem conhecidas” – afirmam os pesquisadores (p. 479).

Discorro brevemente sobre algumas destas condições, apontando a forma como se apresentam no Brasil atual: a) apoio implícito ou não da comunidade mais ampla. No Brasil de 2020, discursos do tipo “bandido bom é bandido morto” ou “primeiro atira depois pergunta” ou ainda “se tá na rua é vagabundo” legitimam e transformam em heróis os policiais violentos; b) fracasso da sociedade em contestar os abusos aos direitos humanos. Aqui o brasileiro justifica este fator com o discurso de que “direitos humanos é para bandido” ou “queria ver se fosse com teu filho”, mostrando uma ideia distorcida do que representa a Declaração Universal dos Direitos Humanos e seus efeitos sobre as sociedades democráticas; c) a falta de responsabilização individual pela tortura e pelo assassinato (descomprometimento moral e desindividualização), sempre cometidos em grupos, nos quais todos são mas ninguém é responsável, diluindo a ação entre diversas pessoas. Exemplos da atuação de milícias atestam este modus operandi; d) a desumanização das vítimas, lembrando que o Brasil é um país em cujas origens negros e índios não eram oficialmente gente e, portanto, poderiam ser vítimas de atos desumanos. Ainda prevalece o racismo estrutural, sendo os negros as maiores vítimas de violência policial. Também serve de exemplo os ataques que os indígenas têm sofrido em 2020 vindos de grupos armados que invadem suas terras; e) validação de governos internacionais e nacionais, que fornecem tecnologia e ideologia de suporte aos abusos. Nesta linha sempre há um mote de “salvar a pátria” dos subversivos, dos comunistas, dos judeus, ou do grupo mais vulnerável no momento. A este respeito, ver o projeto de lei 4425/2020, de autoria do Deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) que criminaliza o comunismo; f) alocação em um grupo de elite, com autonomia o suficiente para criar suas próprias regras e não ser questionado, com status e remuneração superiores aos demais. Podemos considerar no Brasil, os que atuam no sistema (grupos de elite da polícia militar, polícia civil e exército) e os que atuam paralelamente ao sistema (milícias); g) treinamento para a obediência, para a submissão e para a dessensibilização frente à violência, ao melhor estilo “pede pra sair” do filme Tropa de Elite; e h) o uso exacerbado de racionalização e de negação como defesas. “Tudo pelo bem da Pátria!”, é a frase exemplar.

Tudo isto traz um custo pessoal também aos policiais violentos. Problemas familiares, saúde precária, esgotamento, isolamento e abuso de álcool e drogas são apenas os mais frequentes.

O livro traz muito mais do que aqui descrito, como por exemplo a discussão sobre o tipo de masculinidade associada a estes tipos violentos. O que assusta na leitura de um livro de 2006, é que as condições descritas como ensejadoras da criação de monstros estão cada vez mais presentes na sociedade brasileira. Nos orgulhamos de sermos um povo pacífico mas aplaudimos a violência policial contra quem não é “cidadão de bem”. Fica evidente, após a leitura, que se não transformamos as condições que permitem, legitimam a valorizam assassinos e torturadores a serviço do Estado, estaremos caminhando para um Brasil cada vez mais violento.

24/09/2020

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