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Leitura

Contentamento e necessidade
Dinarte Albuquerque Filho

Meu interesse pelo passado tem várias explicações, assim como minha paixão pelos livros e pela leitura. Ler é como escrever: contentamento e necessidade. E a cada palavra, escrita ou lida, atualizo o futuro, ainda que improvável, enquanto remexo no passado. Este é o ponto! E neste ponto metafísico, há cadeados e acrofobia, mas também existe a possibilidade de travessia. O parágrafo que aqui encerro já se tornou “coisa velha”, mas é aqui e agora que estou, com mais uma palavra para digitar, com mais um dia para reinventar o meu futuro. Pelo menos assim parece.

Gosto de reler escritos de ontem, falar sobre a poesia feita por homens e mulheres que viveram em tempos passados, mas me agrada “descobrir” novos autores e novos textos. Particularmente, não gosto tanto de ler o que escrevi quando recém descobria a intenção poética; mantenho, por vício de origem ou por apego, papéis ainda manuscritos. Quando faço, preciso reler muitas vezes; exercito caretas e sensações, risco e inverto a ordem das coisas/dos versos para que elas/eles ganhem um novo sentido. O de hoje – como se não soubesse que só existe passado e futuro; hoje já era, mas temos a incorrigível monomania de querer preservar o instante (as selfies não me deixam mentir.)

Gosto de ler jornais velhos e autores do século XIX e do século XX. Também tenho algumas leituras recorrentes de poetas de épocas mais remotas. Muita coisa escrita ontem, ainda agorinha, já tem o ranço de velho, ao passo que muitas escritas em anos remotos me indicam um presente e um futuro ainda além da literatura, como se os autores estivessem em diálogo permanente com as atualidades, rompendo as cortinas de ferro oxidadas que permanecem baixadas em nosso cotidiano.

Chamamos isso de “clássico” – não com o insidioso viés ministerial dos últimos tempos. Clássicos que nem sempre são lidos, embora reafirmados e exibidos sem pudor em listas dos “livros que mais gostei de ler”. Ítalo Calvino, entre outras coisas, ensina: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” – e “servem para entender quem somos e aonde chegamos” (Por que ler clássicos?, 1993). Porque, então, se tanto já foi lido, ainda vivemos em reconhecida confusão, sem saber quem somos? Será que temos noção de “aonde chegamos”? E mais: para aonde vamos?

Numa dessas listas, escolhida aleatoriamente – em que se encontram Machado de Assis, Aluisio de Azevedo, Bernardo Guimarães, Euclides da Cunha, Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar, Lima Barreto e Raul Pompéia –, é possível que o dito leitor médio tenha lido pelo menos cinco deles. Na literatura estrangeira, os críticos apontadores de listas (fora os opinadores de plantão) elencam 50, 100, 200, 500 títulos...

É muito livro para ler. Muito conhecimento para compartilhar. Escolher é sempre uma decisão que se faz sob a espada de Dâmocles. Diante das prateleiras de uma livraria ou nas recorrentes e nada estanques estantes domésticas, além do interesse imediato e prático, há alguma coisa que se manifesta e direciona nossa mão em direção à determinada lombada e, pronto. Está escolhida a próxima leitura. Ou firmada a reincidência. Reconhecer que a leitura da obra escolhida foi a melhor escolha, trata-se de outra questão.

Por isso, ler o que cair nas mãos, de preferência depois de uma prévia seleção individual, mesmo que as indicações sejam pertinentes. Por isso, ler até não poder mais, com a consciência de que o Universo pode nos engolir ou nos projetar num buraco negro de onde não mais sairemos – não do jeito que entramos –, quando menos esperarmos ou, então, quando chegar a nossa hora. Aquela hora em que nossa individualidade desaparece e as mudanças do corpo nos entristecem, corpo que é portador, desde o nascimento, de um "ser-para-a-morte".

No momento, é uma extensa biografia, uma vida que parece prolongar-se além das páginas e que ocupa meus dias como se cada parágrafo fosse um passo meu pelas calçadas da cidade; bem pertinho, na mesa ao lado, repousam outros tantos volumes, uns começados, com páginas marcadas, passagens sublinhadas à espera de uma nova interpretação; outros, ainda sequer folheados, e uma insinuante voz dizendo que ainda não é o momento, que, mesmo sem terem sido abertos, alertam para a inadequação da leitura.

Divido-me, perplexo, entre manter a sanidade ou enlouquecer de vez nesse impasse. Entre manter o ritmo das leituras ou apreciar com mais vagar cada novo livro que abro. Para que tanta informação mesmo? Para que tanto conhecimento? Qual o sentido disso tudo? O quanto de egoísmo tenho em mim nessa curiosidade em conhecer a vida pelo relato dos outros, imerso nas palavras de outrem? Em embarcar na carona de viajantes por paraísos celestiais e infernos suburbanos? Em projetar-me nos abismos das drogadições várias e das venalidades cotidianas? Qual o nível do prazer solitário e silencioso?

O futuro que nunca chega já chegou?

A importância da leitura é um tópico que me assombra. Talvez sejamos uma sociedade de leitores maior do que realmente pensamos ser. Podemos considerar que tudo em nosso entorno está submetido à leitura e tratar de ficarmos satisfeitos com imperiosa constatação. Em contrapartida, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são mais de 7 mil bibliotecas cadastradas no Sistema Nacional de Bibliotecas do Ministério da Cultura – apenas uma biblioteca pública para cada 30 mil habitantes.

As existentes resistem frente à internet, que facilita o acesso aos conteúdos com muito mais praticidade e conforto. Estas, se reinventam para atrair antigos e novos visitantes. Nas escolas, infelizmente, a realidade é outra: o Censo Escolar de 2017 mostra que menos da metade das escolas públicas e particulares contam com espaço para a leitura, a pesquisa e a convivência – apesar da existência da Lei nº 12.244, de 24 de maio de 2010, que determina que as escolas brasileiras, de todos os sistemas de ensino, tenham uma biblioteca.

O futuro vai se fazendo, mas às vezes parece uma impossibilidade. Leio também o que me entristece, é preciso. As rotinas do dia são cansativas, nem tanto fisicamente quanto mentalmente. Números expressivos indicam reveses na economia, nas ações sociais, nas relações afetivas, familiares e culturais; nas relações humanas. Uma outra forma de pensamento ganha as páginas dos veículos de comunicação e de particulares de forma assombrosa. Quase nada aponta para uma evolução da humanidade, não da forma como aprendi, não como entendo. Ao meu redor, mais mãos vazias se estendem, mais pessoas se desentendem. Troca-se um absolutismo por outro e o que tem valor é o ponto de vista de quem o defende. Enquanto a compreensão do bem-comum é propositalmente embaralhada, me esforço para empreender a travessia da “ponte dos asnos” antes que seja tarde.

Leio e lido com o presente, que nada mais é que um átimo, e reviro o passado, num esforço para decifrá-lo. Busco uma narrativa, busco respostas nas respostas e nas perguntas que os autores que leio propõem. Articulo minhas palavras em torno e além delas. Minhas ideias, que são originais por serem minhas, mas que também estão disponíveis nos domínios em que algo ocorre, orbitam em torno do poder da palavra e da leitura como meio para o conhecimento e a socialização.

Encontro-me na Serra gaúcha, num apartamento cercado por carros, vizinhos, contas e livros. Mas, ao olhar pela janela, embarco em viagens similares às que a leitura me proporciona e sinto um certo alívio; sinto o que Calvino descreve em Palomar: “é verdade que cada onda é igual a outra onda, mesmo quando não imediatamente contígua ou sucessiva” (1994). Ao me aproximar do fim do texto, volto meu olhar para a janela. No corte aéreo que me cabe, o sol se põe mais cedo. No horizonte das perspectivas de um país com mais leitores, entendedores dos signos e dos significados, a noite, a longa noite, já começou.

02/12/2019

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  Dinarte Albuquerque Filho

Dinarte Albuquerque Filho é autor de Fissura no Asfalto (Liddo, 2019), Leituras na Madrugada (Liddo, 2014), Leminski, o “samurai-malandro” (EDUCS, 2009) e Um olhar sobre a cidade e outros olhares (ed. do autor, 1995). Publicou 3, com Odegar Júnior Petry e Fabiano Finco (Liddo, 2005) e Romã, com Fátima Jeanette Martinato (Ed. dos autores, 1991). Participou de antologias poéticas locais, como Misterioso Sul (Elos do Conto – Edição e Arte, 2018), e nacionais – livros, revistas, jornais e sites. Escreve regularmente para os sites www.artistasgauchos.com.br/ e prismajornalismo.com.br/ e para o blog leiturasnamadrugada.blogspot.com. É jornalista, formado pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), e mestre em Letras – Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a dissertação Paulo Leminski, um estudo sobre o rigor e o relaxo em suas poesias (2005).

dhynarteb@gmail.com


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