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Reflexão

Os homens na Antártica
Simone Saueressig

Soube por esses dias da história dos dois primeiros homens a percorrer em torno de 1.500 quilômetros a pé e sozinho, cada um, pela Antártica. Saíram de algum chamado Geleira Union, foram até o Pólo Sul e depois caminharam até a outra margem do continente, na Plataforma de Gelo Ross. O primeiro a cumprir o trajeto foi Colin O’Brady e a imprensa disse que ele “atravessou a Antártica a pé”, o que fez muita gente pensar que ele tivesse feito o trajeto pelo lado mais comprido do continente, 5.800 infintos quilômetros de gelo. Essas deduções sem noção de gente como eu, cuja ideia de “aventura” é pegar um aguaceiro há duas quadras de casa, levaram outros tantos a reclamar num tom de pouco caso o exagero da imprensa: “nem foi o continente inteiro!”. Somos uns desaventurados virtuais que parecem pensar que andar essa distância puxando um trenó de 180 kg, enquanto sobe e desce montes de neve, cai e levanta, tudo isso sob um sol de trinta graus negativos, seja um mero piquenique, mais ou menos como ir até Tramandaí um dia desses e descobrir, no meio do engarrafamento típico do final de ano, que devia ter feito xixi antes de sair de casa. A internet reduziu o planeta e seus desafios a tolas polegadas pixelizadas.

O outro sujeito foi Louis Rudd, que manteve um blog atualizado da façanha e chegou ao destino dois dias depois. Nenhum dos aventureiros recebeu ajuda externa – fazia parte da empreitada valer-se das próprias forças. Não tiveram companhia alguma, salvo do concorrente por algumas horas. Depois disso, cada um foi pelo seu próprio passo. Não havia nada ao redor. Ninguém. Só céu e neve. Dois esquis e um trenó. Cinquenta e tantos dias sem ouvir outra voz que a sua própria, a respiração forte por causa do esforço. Os passos se alternando, um depois do outro, o chiado constante do trenó atrás deles. O vento gelado. O silêncio gigantesco.

Olho para o mapa, que na tela do computador ocupa uns meros centímetros. O que levará um ser humano a fazer isso? Desejo de fama? Necessidade de isolamento? O puro prazer de fazer algo que ninguém até agora tinha conseguido fazer? Tudo isso junto? E no último tramo, o que terão sentido? Vontade de chegar? Cansaço? Medo, prazer, o corpo se desmanchando, a alma se evaporando com a neve sob o sol do verão antártico?

E ao ver o mar e saber-se próximos da meta final e da civilização, terão sentido vontade voltar por onde vieram? Voltar ao silêncio e à luz, ao nada atemporal no continente que abriga todos os fusos horários da Terra e onde o Tempo não faz sentido, apenas as tempestades e o azul-celeste e o chão? Ou será que foi a sensação de estar ali, a sós com um planeta habitado por bilhões de seres humanos iguais a eles mesmos? Pois nesse tempo em que eles caminhavam puxando seus trenós, um incêndio consumiu uma loja na 25 de Março, em São Paulo. No passo de um, seres humanos escalaram uma cerca em busca de um lugar melhor para viver, no México; passo de outro e Armando Silva Gomes, notório fujão das cárceres portuguesas, foi capturado pela polícia lusitana; mais outro e nos Açores fez frio, mas no passo seguinte, em Registro, no estado de São Paulo, os termômetros chegaram aos 40ºC. Um passo de O’Brady, milhares nasceram. Outro passo, milhares morreram. No ofego de Rudd, o Krakatoa varreu a Indonésia com tsunamis, lembrando ao mundo o seu poder. No suspiro diante da luz que a tudo devora, milhões festejaram o Natal. A Terra girou 360º sobre seu eixo sob seus esquis. As marés avançaram e recuaram. A Lua nova cresceu e a Lua cheia brilhou por duas vezes, mas de onde eles estavam, o brilho do sol era soberano – e os bancos de nevoeiro, e os tropeços, e as quedas, e os recomeços.

Dá igual. Gosto de olhar as imagens dos dois homens na neve, e não porque lá fora se apague uma tarde escaldante. De algum modo, esses homens que vão e vêm sozinhos pelo planeta que nos coube, me falam de calma. Um momento de olho no olho, criatura e planeta, um instante de compreensão mútua, de bondade e intimidade. Não importa o que vem a seguir, qual o banco de neve, a ladeira, íngreme ou não. Essas pessoas me fazem pensar que não importa de onde viemos, nem para onde vamos. As duas pontas são meras convenções que inventamos para medir distâncias, confrontar trajetórias e comparar o incomparável que é cada vida humana. Cada um de nós anda pelo mundo, carregando o seu trenó e inventando o rumo a cada passo. Não importa a partida, não importa a chegada, nem os tropeços, nem as quedas, os dias em que paramos por não ver o rumo no horizonte todo branco, incógnita que sempre é o futuro. Nosso verdadeiro destino é o caminho em si mesmo. E o único que importa é que não paremos de andar.

15/01/2019

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  Simone Saueressig

Simone Saueressig nasceu em Campo Bom (RS), em 1964. Professora de balé desde os dezoito anos, a autora também trabalhou como editora do suplemento infantil "Popinha" do Jornal NH, de Novo Hamburgo. Na década de 90, Simone morou na Espanha e neste período escreveu inúmeros contos infantis para o jornal "Ya", de Madri. Atualmente, Simone tem vários títulos publicados para o público infantil e infanto-juvenil. Entre eles, destacam-se “A Máquina Fantabulástica” publicado há 20 anos, ininterruptamente pela Editora Scipione, e os livros “O Rubi Ragank” e “A História do Rubi Ragank”, publicados em 2012 pela Um Cultural.

contato694@gmail.com


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