Abrir mão ou manusear, cutucar, segurar, apontar. Estar à mão.
Sabe-se que, muito antes das máquinas, tudo era feito à mão, com apelo ao tempo e à paciência, num capricho. Debulhar o trigo, por exemplo, exigia que se segurasse um punhado de talos juntos, amarrados com barbante para que estivessem firmes. Depois a mão afundava no oco de um pote de barro e os batia vigorosamente contra as paredes para que os grãos se soltassem dos caules. Por último, enquanto uma das mãos segurava um leque ou um pedaço flexível de casca de madeira, a outra jogava os grãos de um recipiente para outro; o vento feito pelo leque soprava de modo a separar o joio.
Assim talvez tenha acontecido com a literatura: ela aconteceu como o debulhar do trigo. O escritor ou o poeta, apelando ao tempo e a paciência, segurava no pensamento um punhado de ideias juntas, as amarrava firmemente com a sintaxe mais apropriada e depois as afundava no oco do papel, batendo-as vigorosamente contras as regras da linguagem, até que o sentido legítimo de suas intenções se soltassem. Depois, com o leque flexível dos olhos, o escritor revisava tudo, buscando retirar o excesso.
A literatura nunca conseguiu superar esse processo de maneira definitiva. As fórmulas literárias delineiam o caminho mais firme para as intenções do escritor, porém não garantem a representação apropriada ao sentido. No melhor caso, apenas parece literatura, mas sem a ardor da paixão, sem o pulsar das têmporas, sem o suor frio das mãos.
As mãos. A literatura precisa andar de mãos dadas com o sentido.
Mesmo quando o escritor alcança o legítimo texto literário não há garantias de que será compreendido. Entre as mãos pedintes dos ocasionais leitores, o que eles pedem, por vezes, é menos do que se entrega. Muito em razão de que há muito não se encontram leitores debulhadores, daqueles que, enquanto leem, seguram a história firmemente, amarradas com a sua curiosidade e, numa pausa repentina, uma pausa promovida pelo representar vigoroso de uma ideia ou forma poética, mergulha-a no oco de sua compreensão, batendo com força nos limites do seu entendimento, até que o sentido se separe do familiar e apareça inesperadamente; depois com o sopro de um deslumbre, ele separa o comum do divino.
Houvesse ainda leitores com tal disposição, com a disposição de promover a arqueologia dos textos literários, e o número de escritores reduziria drasticamente. Seria preciso dar a mão à palmatória e admitir que vivemos uma crise peculiar na literatura: a crise da interpretação. Qualquer escritor que hoje se demore, apelando ao tempo e à paciência, para produzir um texto literário rico de sentidos, é um escritor frustrado. Pois os campos de trigo estão abandonados e já são poucos os leitores capazes de debulha-los.
A literatura, a grande literatura, sempre será artesanal. E o grande leitor sempre será alguém que mira os detalhes. O sentido é refém de uma disposição que não pode se dar ao luxo de andar com as mãos amarradas. Ainda que o frêmito digital nos limite ao cutucar incessante no espelho negro das telinhas, há que se reintroduzir o hábito da leitura caprichosa, a leitura que apela ao tempo e à paciência.
É como a mão miúda das crianças, que experimenta o mundo aos pouquinhos. E tudo faz sentido.
Bom dia
Cássio me sinto gratificada ao ler um texto tão criativo e inesperado.
parabéns
dionizia portella ghiggi, pelotas/rs 29/12/2016 - 09:37
Cássio, simplesmente admirei as comparações que fizeste nesse texto. És um mestre no gênero. Indica-me um livro teu para que eu posa adquiri-lo. Parabéns.
Aglaé Machado de Oliveira., Porto Alegre-RS 28/12/2016 - 17:37
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