Artigo recentemente publicado no periódico “The Guardian”, de autoria de Sophie Heawood, discorre sobre o “Slow Reading” (na tradução direta “Slow Reading” significa “Leitura Lenta”). O “Slow Reading” é um movimento que começou em Wellinton, Nova Zelândia, onde um grupo de pessoas decidiu, certo dia, sentar junto em uma sala para ler em silêncio.
Não se trata de um clube do livro onde você vai para discutir alguma leitura previamente realizada em casa. Não. A ideia é simplesmente compartilhar um espaço comum, onde todos permanecem em silêncio e com seus aparelhos digitais desligados (telefones, iPad’setc), de modo a evitar qualquer distração, dedicando a mente apenas à leitura.
Segundo Sophie (que frequentou um desses encontros com o intuito de avançar na leitura de um livro), a experiência proporcionou descobrimentos: “Eu notei tantos detalhes sutis no livro que lia, muitos deles eu sequer tinha notado antes (...); então me questionei sobre o quanto eu tenho perdido na leitura de todos os outros livros que tenho. Minha atenção ficou totalmente focada na página que eu lia, inteiramente – não havia nada mais na sala que me distraísse.”
Pense a respeito: como você lê?
Nos dias atuais, dispor-se à leitura pressupõe conciliaras demandas e os apelos desse mundo acelerado no qual vivemos. O mergulho na leitura nem sempre é efetivamente um mergulho. Em geral estamos sempre na superfície, buscando recuperar a leitura enquanto tentamos dar conta das obrigações cotidianas. Mesmo quando conseguimos executar nossas responsabilidades, ainda assim há um mundo digital inteiro com o qual lidar. É comum observar gente que em uma mão segura um livro e na outra o celular. As mensagens de What’sUp insistem em pular na tela do celulare é preciso dar uma espiadinha, pois pode ser importante. Novos “posts” dos amigos no Facebook despertam a curiosidade e é quase impossível não acessá-los.
Há quem abdique do mundo digital e decida ler perto da televisão, junto aos filhos ou ao parceiro. Enquanto eles assistem aquele filme que já vimos dezenas de vezes, por que não aproveitar e ler aquele livro que há muito descansa no criado mudo? Pena que aquela cena que você gosta tanto o distraia por alguns instantes e o faça esquecer o livro aberto sobre o sofá. Tudo bem. Na manhã seguinte, indo ao trabalho, no ônibus, é possível recuperar a leitura. O marcador de página é bem útil então. Claro, você precisa voltar alguns parágrafos para entender o contexto e seguir em frente. O burburinho ininteligível, as vozes rouca dos motores, a sonoridade dissonante das buzinas, tudo numa sinfonia perturbadora e você ali com o livro na mão, tentando não perdera concentração.
Sim, você lê, não há dúvidas. Mas insisto: como você lê? Será que você desfruta de fato o livro que tem em mãos?
Embora a ideia do “Slow Reading” seja interessante, pois recupera a experiência de leitura de épocas em que a vida nos dava mais tempo, talvez ela seja apenas a neve do Aconcágua. Ler não é apenas encontrar as condições que permitam concentrar o foco no texto.
Todas as oficinas literárias que ministro iniciam, para a surpresa dos participantes, com aspectos da leitura e não da escrita. Escreve bem quem lê bem e ler é uma experiência que para ser bem realizada precisa acontecer em pelo menos três níveis.
O primeiro é o Nível Semântico, que corresponde à simples capacidade de compreender as palavras e como elas operam no texto, de modo que possamos repetir em nossa mente aquilo que ali no texto está dito. O nível semântico nos permite alcançar o texto enquanto texto, ou seja, realizar propriamente o ato de ler.
O segundo é o Nível Pragmático, que corresponde à nossa capacidade de compreender as condições em que o texto foi escrito. Um texto que nos apresenta situações que não dizem respeito à nossa época, por exemplo, para ser compreendido corretamente, exige discernimento das razões pelas quais o autor defende aquela posição quanto a certos comportamentos ou hábitos humanos.
O terceiro é o Nível Hermenêutico (ou Metafórico), que corresponde à nossa capacidade de perceber os jogos da linguagem, as intenções de fundo do autor (o Prof. Assis Brasil costumo referir a esse aspecto como subtexto), aorganização narrativa, o papel das personagens para a condução da trama etc. É nesse nível que o leitor pratica a desenvoltura do seu pensamento, conquanto é impelido a pensar nas possíveis intenções do autor.
Creio que o hábito de leitura corrente, que se ajusta ao apelo de estar em concorrência com todos os apelos adjacentes – sejam aqueles do mundo real, esse mundo inquieto e apressado, sejam aqueles que se dão pela interação digital –, perde muito dos últimos dois níveis da leitura – o pragmático e o hermenêutico. O prejuízo amputa a possibilidade de ter no livro o meio pelo qual podemos refinar o pensamento. Mas em termos práticos, a perda mais imediata é a experiência plena da leitura. Em tais circunstâncias, ler não é ler.
Talvez o “Slow Reading” possa oferecer um modo consistente para recuperarmos a experiência de bem aproveitar nossas leituras. Mas é preciso tempo e disposição para tanto. Tal disposição duelará sempre com a noção de que algo mais urgente pode estar acontecendo em outro lugar. Afinal, ler é resistir a todo o resto. Logo, desligue o celular, a televisão, o computador e escolha uma poltrona confortável: você tem agora um livro nas mãos. E um livro deveria ser sempre o lugar onde é possível ser por inteiro. Então, seja. Você vai adorar a experiência.
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