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O bem verdadeiro de Maria Elena
Cássio Pantaleoni

Aos escritores recomenda-se a cautela quando decidem expressar as atribulações de suas almas publicamente, seja através de uma palestra ou de um artigo. Em geral, as bandeiras que levantam possuem cores próprias e nem sempre alcançam o prisma dos humores daqueles que as reparam. Faz parte, diria o mote popular.

O último artigo que esculpi nas pedras digitais do sítio Artistas Gaúchos, intitulado “O Fim do Livro” angariou simpatias, descasos e censuras. Entre todos esses donativos, uma das censuras cativou-me profundamente, pois argüia de modo legítimo pelo “bem verdadeiro” do texto. Sob a égide de uma pergunta simples, Maria Helena postulou: faça algo então!

Meu entendimento é que tal sentimento decorre particularmente de uma passagem do texto que recomenda: “Devemos renunciar às produções escritas construídas sobre o solo do conhecimento imperfeito das possibilidades da prosa e da dissertação...”. É um sentimento legítimo, esse da Maria Elena – Faça algo então, ela me pede.

Fazer algo. Esse fazer algo pode abrigar tanto o sentido de obra grandiosa quanto o sentido de pequeno ato. Fazer algo é, entretanto, um agir em função de uma meta, mesmo que esta seja apenas continuar agindo de qualquer modo. E qual é a meta, no caso pleiteado pela Maria Elena? Seria a proposição de uma revisão do sistema educacional brasileiro ou o engajamento servil à causa literária? Ou seria a mera proposição de um manifesto em prol do vigor literário?

Por ora me manifesto, é claro. Estou convicto de que há um círculo vicioso nos meios que promovem a literatura. Ele ocorre porque antes de tudo se quer vender livros e não vender literatura. O vigente na pauta dos escritores, editores, mídia, distribuidores e livreiros é a venda do livro. Fala-se da indústria do livro. Fazer o livro que vende. Vende por quê? Seria por que somos um povo que não saber ler, então compra o livro como um objeto? Tornou-se raro escutar “Você leu aquela passagem na décima página do `Homem Comum´ do Philip Roth?”. Hoje em dia escuta-se “Você comprou o livro do Phillip Roth?”. Há uma tendência mórbida de nos atermos ao simplesmente dado; a leitura atenta há muito foi substituída pelo passar de olhos, e TER O LIVRO tornou-se mais importante do que LER O TEXTO.

Lembro de uma passagem do filósofo alemão Martin Heidegger que ilustra, de certo modo, esse aspecto. Ele escreveu: “(...) o olho meramente curioso das pessoas. Esse olho vê apenas o que lhe aparece de imediato – o evidente para o olho, o único presente que as satisfaz. O olho da multidão não se inclina para perceber aquilo que se mostra num olhar para além (...) O olho das pessoas é cego para os sinais (...) O olho das pessoas não dispõe de um olhar para o pouco evidente e discreto, para esse lugar de abrigo dos sinais autênticos”. Como podemos ajudar? Como podemos influenciar escritores, editores, mídia, distribuidores e livreiros a considerar a leitura que faz vender o livro ao invés da venda que faz ter o livro? Pergunta difícil. Queremos mudar o mundo?

Para contribuir para uma melhoria perceptiva geral é preciso um renascimento cultural, coisa que me soa como ufanismo. Nessa luta, pequenas vitórias são sempre importantes, na medida em que se estabelecem como focos de resistência. Ao escrever um texto como “O fim do livro” estou realmente falando do óbvio porque há muito nos esquecemos de revisitá-lo. É o modo que escolhi para fazer resistência às tendências do livro na atualidade. Esse é um jeito de “fazer algo” em prol do revigoramento perceptivo. Mesmo os mais escolados se esquecem de reconsiderar o óbvio. Precisamos trazer o óbvio a tona, do contrário como seríamos capazes de ajuizar corretamente sobre o círculo vicioso que ora se instaura na indústria do livro?

Pergunto: quantos representantes dessa "indústria" são capazes de interpretar corretamente o conceito do Eterno Retorno no Mesmo de Nietzsche? Quantos são capazes de reparar que Milton Hatoum investiu dezenas de parágrafos para revelar quem era o narrador de Dois Irmãos? Quantos reparam que a metáfora “os raros deleites de agosto faz o tolo de abril” fala de luxúria, sedução e de um bebê não esperado?

Esse desafio nos impõe uma atitude. Devemos, como diz Maria Elena, fazer algo “surpreendente que conquiste os cultos e incultos deste país inspirando-os a querer melhorar!”.

É exatamente inspirado por pessoas como Maria Elena que simplesmente escrevo. O projeto literário que me proponho está pautado pelo movimento em favor do “abrigo dos sinais autênticos”, como escreveu Heidegger. O óbvio, esse “bem verdadeiro”, é que tal empreendimento pretende fazer viger textos que merecem ser lidos atentamente, pois quer antes de tudo enfraquecer o simplesmente dado, aquilo que nos cega para o detalhe. Escrevo assim para provocar os atuantes da “indústria do livro” e nutrir a esperança de que possamos fazer uma minissérie da obra de Machado de Assis com o título fiel de "Dom Casmurro" e não de "Capitu".

Afinal, o modo de “fazer algo” do escritor é escrever.


17/12/2008

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  Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni nasceu em agosto de 1963, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Escritor, Mestre em Filosofia pela PUCRS e profissional da área de Tecnologia da Informação. Vencedor do II Premio Guavira de Literatura, na categoria conto, em 2013, com o livro “A sede das pedras”; finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”. Segundo lugar na 21a. Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski; duas vezes finalista no Concurso de Contos Machado de Assis, do SESC/DF; duas vezes finalista no Premio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Desenvolve workshops sobre leitura, técnicas de escrita ficcional e filosofia aplicada à literatura. Obras Publicadas: “De vagar o sempre” – Contos – 2015, “O segredo do meu irmão” – Novela infantojuvenil – 2014, “A corda que acorda” – Infantil – 2014, “A sede das pedras” – Contos – 2012, “Histórias para quem gosta de contar histórias” – Contos – 2010, “Ninguém disse que era assim” – Novela – 2006, “Os despertos” – Novela – 2000.

cassio@8inverso.com.br
www.sextadepalavras.blogspot.com
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