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Polêmica

Christo deu Godot na Fronteira do Pensamento
Alexandre Vargas

A incompreensão impera entre o público participante do Fronteira do Pensamento diante da presença de Gerald Thomas e Fernando Arrabal. Talvez a incompreensão possa ser a grade de proteção do “Condomínio RS” que tem os seus usos, costumes e ritos. Para ser Franco, Christo e Jeanne-Claude, dupla de artistas búlgaros, deram o Godot no Fronteira do Pensamento e Thomas com Arrabal fizeram estragos nos dogmas de uma cultura sulista. A ironia é que foi justamente um movimento não pensado, num evento pensante, que seguiu o seu fluxo gerando mal-entendidos. Provocando o desprezo e o ódio e suscitando a violência, aquela mesma que anda ao lado das guerras.

Na origem desse fanatismo da incompreensão, há a incompreensão de nós mesmos: os gaúchos. Mas a arte é um Cavalo de Tróia dentro de uma Roma podre. É inevitável: o estrago esta feito! O acontecido é um testemunho extraordinário que revela uma autojustificação frenética, da nossa incapacidade de se auto-observar e autocríticar. O acontecido é o dia, o fato, e tudo que ele gerou: os textos em jornais, nos blogs, nas revistas, os desabafos verbais, as matérias em rádios e Tv’s, a hostilidade, o desprezo, o ódio, à dissimulação, à mentira, às idéias preconcebidas, as torrentes de baixeza, a exposição dos que se manifestam, um espaço na memória e tudo mais. No entanto para estimular o pensamento precisamos ir além da Fronteira do Pensamento. Precisamos olhar um todo. É o que prega o 1° conferencista do Fronteira do Pensamento da edição 2008, Edgar Morin. O sociólogo e pensador francês, de alma sem fronteiras, trousse ao mundo novas proposições para pensar bem. Morin é um homem que faz da complexidade um problema fundamental a ser abordado e elucidado. O estranho, e revelador, é que o seu pensamento e as suas reflexões foram completamente esquecidas, abandonadas ou excluídas dos questionamentos sobre o que aconteceu em Porto Alegre, neste encontro de Thomas com Arrabal. Onde está o público que ouviu a sua conferência, que comprou os seus livros, que o idolatrou, que o consumiu? A verdade (se é que ela importa), é que Edgar Morin já foi esquecido por esse público consumidor de pensamento!

Thomas e Arrabal, sem saber, com as suas exposições, expuseram a fragilidade do “Condomínio RS” e dos consumidores de pensamento. Pois a visão e o pensamento superficial transbordou num mosaico de falas, na imprensa e nos impressos, de artistas, jornalistas, comentaristas esportivos, publicitários até os psicanalistas. E se fossemos aplicar a mesma visão superficial sobre essas manifestações, ou sobre essas pessoas? (Esses formatadores de opinião.).

Vamos analisar um trecho que o jornalista Juremir Machado da Silva escreveu no jornal Correio do Povo: “Gerald Thomas não tem produção que lhe permita sequer lustrar os sapatos do Arrabal. É uma diva enlouquecida que não suporta encontrar alguém mais famoso”. Diríamos que é uma lastimável visão rasteira de um jornalista que traduz tudo em vaidade — ou que Juremir Machado da Silva não tem produção que lhe permita sequer lustrar os sapatos de Érico Veríssimo. Mas o Juremir Machado da Silva é mais do que isso é um jornalista importante, traduziu sozinho quatro dos seis volumes de O Método: “Foi lendo e relendo O Método que percebi algo simples e decisivo: compreender não é preciso. Mas é vital. Aventura incerta, complexa, sacudida por ondas gigantes, a compreensão é o grande desafio da travessia do homem no cotidiano. Ética, última pedra nesta construção sem fundamento último, sempre aberta ao recomeço, portanto inacabada, é uma peça essencial no todo, um grito contra o moralismo que ronda, uma defesa de um novo humanismo argumentada com brilho e poesia, um resgate vertiginoso da reflexão como exercício de civilização e de civilidade.” Lindo não é. Pois então, O Método é uma sinfonia pela reforma do pensamento escrita por Edgar Morin. Se aplicássemos a mesma visão superficial sobre o jornalista Juremir Machado da Silva, diríamos que ele não aprendeu nada traduzindo Edgar Morin. Mas ele aprendeu.

O texto do jornalista David Coimbra publicado no jornal Zero Hora, inicia com uma citação: "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade debaixo do sol". Nova redução de Thomas e Arrabal a vaidade. Mas se fossemos aplicar a mesma visão superficial sobre o David Coimbra que se desdobra em: comentarista de futebol na TV e no rádio, colunista da Zero Hora, radialista de um programa de rádio chamado “Pretinho Básico”, comentarista em outro programa de TV chamado “Café TV Com” e de quebra a cada ano, quando se aproxima a Feira do Livro de Porto Alegre, Coimbra publica um novo livro. Talvez se fossemos aplicar a mesma visão superficial diríamos: "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade debaixo do sol". Mas o David Coimbra é mais do que isso é um escritor interessante e cada novo livro seu que é publicado, quando se aproxima a Feira do Livro de Porto Alegre, é um sucesso de vendas.

O pronunciamento de um grande cineasta, o Sr. José Pedro Goularte: “O que vimos foi uma idiotice, uma palhaçada — disse o cineasta José Pedro Goulart, que estava na platéia. — Quando pensei em reagir, o Gerald saiu do palco. Eu queria ter feito só duas perguntas: qual o cachê que ele recebeu e o que ele acha da juventude na terceira idade.” Se fossemos aplicar o mesmo grau de profundeza, da sua argumentação, sobre o seu trabalho de cineasta, diríamos que o seu grande mérito como cineasta é fazer comerciais de cerveja. Mas não é! O José Pedro é um profissional seriíssimo e competente, com alto reconhecimento e notoriedade no meio publicitário.

“— Foi patético — resumiu o psicanalista Mário Corso ao jornal Zero Hora. — A sensação que tive foi a de que o teatro vive um impasse porque seus grandes ícones não têm o que dizer. Eles demonstraram não ter nada a dizer. O que se viu foi só um choque de egos, mais nada”. Bem aqui é complicado, sou um artista e não me sinto apto para falar da psicanálise, não ousaria dar comentários sobre um trabalho que não domino, isso seria patético, pois as produções psicanalíticas vão além das seções em consultórios. Não conheço os grandes “ícones” vivos da psicanálise (Nem os mortos, leio apenas o Mario Corso.). Mas se aplicássemos a mesma visão superficial sobre o psicanalista Mário Corso, diríamos que esse psicanalista, por não ter nada a dizer, deveria pagar o analisando.

Acredito que não compreendemos onde está a nossa vontade de Coerência. Pois não recolocamos as perguntas e nem reencontramos as dúvidas. Não mobilizamos mais as nossas inquietudes. Não percebemos que as soluções não seguem os problemas e o repouso não segue à quietude. O nosso saber não seque as nossas dúvidas e as respostas não seguem as nossas perguntas. O perigo para a arte de hoje está na arrogância dos que sabem, na sabedoria dos proprietários de certezas e dos esclarecidos da cultura, na boa consciência de toda espécie e na tranqüilidade dos que já sabem o que dizer para um público que sabe o que quer ouvir. Mas há incompatibilidade quando se modifica ás práticas e as regras dos discursos instituídos – os mesmos que exercem influência sobre o que se pode e não se pode dizer no campo intelectual.

É certo que alguns costumes do nosso “Condominio RS” podem ser considerados bárbaros e repugnantes: desprezar o outro, culpar e diabolizar o inimigo (o estrangeiro), reduzir o outro só ao traço da vaidade por exemplo. Desprezar Thomas e Arrabal é recusar a compreendermos a nós mesmos. Desvincula-los de suas trajetórias é mata-los. Explicar Thomas e Arrabal é desumaniza-los. Não compreender que a arte é absolutista, — o teatro de um quer matar o teatro do outro —, é uma ingenuidade. Ou ignorância. Nesse caso temos uma esperança, já que a ignorância é um estado possível de alguém aprender algo. Tanto quanto Thomas e Arrabal, boa parte desses consumidores de pensamento são gangrenados pela hipertrofia do ego e pela necessidade de reconhecimento e de glória. Se pensarmos “o outro” além da fronteira do pensamento, não vamos reduzir Thomas e Arrabal somente ao que aconteceu, mas se tomarmos em conjunto as diversas dimensões e aspectos de suas personalidades, inserindo-os nos seus contextos artísticos e culturais e simultaneamente percebendo os seus atos e as suas idéias, que possuem raízes em fontes culturais, sócias e históricas, vamos captar os aspectos singulares e universais desses artistas. O paradoxo é que a compreensão, tão viva e presente na vida imaginária que Thomas e Arrabal nos propõe em algumas das suas criações no palco, nos falta na vida.

Por estranhas razões, envergonhamo-nos de compartilhar no “Condomínio RS” o que realmente importa. Talvez algumas revelações nos tornem vulneráveis. Não foi Thomas, Arrabal, Israel, Francisco Franco, Fronteiras do Pensamento ou o “Condomínio RS”, mas Beckett que nos deu um aviso: “Não podemos Esperar Godot”. A alienação em que vivemos é resultante da incapacidade generalizada de se comunicar autenticamente. Nesse cemitério somos todos encenadores de si mesmos. O encontro contingente de Thomas e Arrabal, força a pensar, e produz a necessidade de um ato para além das fronteiras do pensamento.

Alexandre Vargas, um dos fundadores do Grupo Teatral Falos & Stercus.

28/05/2008

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